16/08/2020
Silêncio.
Para todos os lados, existem medos. Medo do presente, medo do futuro.
Vivemos um tempo de apreensão, onde coletivamente seguramos nossa respiração: para não se contaminar com o vírus, para não contaminar os outros.
Dia após dia, as estatísticas indicam o avanço das mortes. Já superamos cem mil mortos. Apenas por COVID-19. Apenas os registrados como tal. Sem contar os mortos pela violência e pela fome, sem contar os mortos por negligência de uma política em escala nacional que mata todos os dias pela sua ausência.
Faltam palavras para descrever o que vivemos.
Silêncio.
Enquanto as palavras nos escapam na perplexidade, nas tentativas incontáveis de compreender esse momento histórico sem precedentes, há também verdades que gritam:
Grita a inação do nosso Estado para conter a pandemia. Faltam insumos básicos, as medidas econômicas prometidas não chegam às pequenas empresas. Metade da força de trabalho brasileira está desocupada, desempregada, abandonada.
Grita o auxílio emergencial, um fôlego para a vida de tantos brasileiros, constantemente anunciado como inviável, por um custo alto demais à uma economia que agoniza desde antes da crise sanitária.
Gritam as canetadas que “passam a boiada” sobre nossa natureza, que também é viva, que queima e agoniza.
Gritam as medidas de reabertura econômica, que obrigam milhares de pessoas que ainda têm seus empregos a saírem de suas casas para aguardarem clientes que não vêm por medo. Pessoas que são obrigadas a se expor por números em uma tabela, pessoas que também sentem medo.
Grita o medo de se contaminar. O medo de se somar aos milhões de desempregados. O medo de morrer.
À parcela que pode trabalhar em casa, há outros gritos:
Gritos das crianças que não vão às escolas. Gritos de fome. Gritos de tédio.
Gritos que cobram que se faça mais. Sempre mais.
Gritos que exigem que se agradeça pelo emprego que (ainda) permanece. Gritos que demandam gratidão por estarem em casa. Gritos da violência que tantas pessoas vivem dentro de suas casas.
Gritos de ameaça e gritos de quem pede ajuda e não tem mais para onde fugir.
Não há respostas.
Silêncio.
Os dias passam. A ciência não traz a solução. Como disse Tedros Adhanom, Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde, “não há nenhuma bala de prata” para combater a COVID-19. “Talvez nunca tenha” [1].
Estatísticas e mais estatísticas econômicas anunciam os piores indicadores em décadas. Notícias anunciam a morte, o terror, a certeza de que o pior está por vir.
Nos faltam palavras em um mundo cheio de palavras e informações, que não param de anunciar o fim. Palavras que se misturam com os anos de avisos e alarmes feitos por cientistas e pensadores, com anos de avanços na concentração do poder, no desrespeito a vida em todas as dimensões por aumentos nos lucros.
Faltam palavras em um Brasil que quase ouviu um “vou intervir” [2]. Que é constantemente lembrado pelos militares e fiéis seguidores do presidente, como pelo bem da democracia, esse dia ainda poderá vir.
Em um Brasil que não encontra força nem palavras para dizer basta.
Silêncio.
Enquanto esperamos respostas, pessoas encontram formas de seguir em frente. Aprendemos a usar máscaras e higienizar superfícies. Optamos cada vez mais pelo descartável, sem pensar para onde o descartado vai.
Recorremos às telas para reuniões, aulas, para as saudades de quem não devemos abraçar. Recorremos à tecnologia em busca de esperanças, em busca de uma conexão com o que nos faz humanos.
Mas com as máscaras, com as camadas, com as telas, já não nos reconhecemos mais. Mudamos nossos hábitos sem nos perguntar o que isso poderia implicar para viabilizar uma vida que, por hora, não é mais possível.
Uma forma de viver que não se sustenta mais. Uma forma de vida que para nós, na periferia do mundo civilizado, já era a barbárie.
Silêncio.
Toca uma buzina de um entregador na rua. Rompe-se o silêncio.
Surge a indignação. A raiva promovida pela consciência sobre as condições de trabalho dessas pessoas, que se expõe ao risco para preservar os outros. Trabalhadores sujeitos a horas na rua, esperando a demanda do consumo alheio.
Grita o abismo entre o privilégio de poucos e a realidade do povo.
A entrega é feita na vizinhança. A moto passa.
Silêncio.
É no cotidiano que a realidade concreta se constitui. Realidade que resulta da soma de um sem fim de ações, deliberadas ou não. Nesse cotidiano, tão transformado pela crise do Coronavírus, estamos sujeitos às consequências das ações tomadas pelos outros e, também, às consequências das ações não tomadas. Quanto mais tempo aceitarmos, em silêncio, às violências impostas ao povo nessa perversa socialização do ônus, mais essas perversidades serão cristalizadas em nossa paisagem, em nossos hábitos, em nosso cotidiano.
É hora de olhar para a rua. Olhar para as estatísticas. Sentir a dor do outro.
É hora de olhar para o Estado, que torce para “tocar a vida e se safar desse problema” [3] e de escolher como queremos viver.
É hora de romper o silêncio. Juntos.
Referências externas
[2] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro ” Precarização: Degradação do trabalho no capitalismo”, escrito por Albani de Barros.
Sobre a autor: Albani de Barros é autor de Para Além de Prometeu?, publicado em 2015. Professor universitário, com pesquisas voltadas para análise do trabalho a partir da perspectiva marxiana. É graduado em Comunicação Social e Mestre em Serviço Social pela UFAL. Doutor em Serviço Social pela UFPE.
Resumo: Os estudos sobre a precarização do trabalho ganharam relevância e interesse nas últimas décadas, notadamente nas ciências humanas. Mas, diferentemente de muitas incursões sobre o tema, que essencialmente procuram examiná-lo por meio de uma análise conjuntural, o presente livro soma-se a outros estudos, ainda que poucos, que examinam a questão da precarização a partir de uma perspectiva radicalmente crítica. Nas reflexões propostas no texto, encontra-se a análise de que a expansão mundial das formas de trabalho marcadas pela “flexibilidade laboral”, pelo medo, pela ausência de vínculos e de incerteza se haverá emprego constitui um modo ampliado da precariedade, portanto, de um processo de precarização do trabalho. Ainda que o desenvolvimento do capitalismo tenha introduzido particularidades históricas que mereçam uma análise específica, o livro aponta na direção de que o exame da crítica da economia política desenvolvida por Marx possui uma validade indispensável na análise da precarização. Assim, as múltiplas formas de representação da precarização do trabalho, como a incerteza quanto ao emprego, informalidade, elevadas taxas de rotatividade, trabalho em tempo parcial, contrato de trabalho “zero hora”, precariedade subjetiva, trabalho invisível precarizado, entre outras, são aspectos que, ainda que ampliados ou reconfigurados nas últimas décadas, têm por origem fundamental o movimento de acumulação de capital.
Edição: 2019, impressa