Coletivo Veredas Newsletter NL11 – Que crise é esta?

NL11 – Que crise é esta?

15/09/2020

No ano de 2019, os grandes “players” do capital mundial se preparavam para um 2020 de crise. As previsões iam desde algo bem pior do que 2008 até uma crise mais prolongada, porém não tão aguda. Mas ninguém previa um ano tranquilo na economia.

O “resto” do mundo parecia normal. Tirando a crise econômica e para a qual os Bancos Centrais, o FMI, o Banco Mundial e os capitalistas se preparavam, nada havia de ameaçador no horizonte.

Chegamos em setembro e um 2020 inteiramente diferente nos contempla.

Veio a pandemia da Covid-19. Ela explodiu neste ano de 2020. Mas é parte de um processo mais longo. Em busca do lucro, o capital vai tornando o planeta cada vez mais geneticamente homogêneo. Destruímos as florestas e as substituímos por plantações de árvores, cereais ou campos para gado; gigantescas fábricas de carne (suínos, galináceos, gado) capazes de processar milhões de toneladas de carne requerem a criação de bilhões de frangos, milhões de porcos, outros milhões de bois e vacas. Para ser de fato lucrativo, os animais a serem processados nestas fábricas devem ser os mais semelhantes possíveis: a homogeneidade genética é imperativa para o lucro, tal como a homogeneidade das toras de eucaliptos aumenta a lucratividade das fábricas de papel e a homogeneidade do Pinus potencializa a lucratividade na produção de móveis ou de materiais para a construção. (Sobre isso, ver a Newsletter do Veredas de 07 de julho)

Para a maior lucratividade do capital, também, homogeneizamos a humanidade. A força de trabalho e o consumo (não as pessoas que trabalham e que consomem, pois as pessoas não contam) precisam ser concentrados em enormes centros urbanos, com o menor custo possível. As cidades cresceram assustadoramente (não é mero acaso que não tenham crescido tanto na Europa desenvolvida!), bilhões de seres humanos vivem em favelas ou assemelhados, com atividades econômicas e uma rotina também muito parecida. O impressionante Planeta Favela, de Mike Davis, não nos deixa mentir. A concentração de renda, já brutal, com a Covid-19, se acelera e promete uma humanidade ainda mais desigual.

Isto é tudo o que é preciso para vivenciarmos epidemias sobre epidemias, como argumentamos na Newsletter 07, acima mencionada. A natureza, pelos próprios processos biológicos, produz incessantemente novos vírus, fungos, bactérias etc. Com um ambiente genético homogêneo e concentrado, basta um micróbio com capacidade para se generalizar entre os humanos para que tenhamos epidemias. Que outras virão, não é uma questão de “se”, mas de “quando”, dizem os cientistas. Lembremos uma vez mais o livro de Laurie Garret, The comming plague, de 1995, que já mostrava a inevitabilidade de epidemias.
 

Nossa produção de micróbios


Não satisfeitos, ainda damos uma mãozinha. Criamos centros em praticamente cada cidade no planeta, que colocam humanos doentes em contato com micróbios cada vez mais mortais e resistentes aos remédios – que os próprios centros produzem.

Como sabemos há décadas, nenhum remédio mata todos os micróbios. O que o remédio faz, na verdade, é tornar o micróbio tão fraco que o corpo humano é, na maior parte das vezes, capaz de eliminá-lo. Contudo, por vezes, alguns sobrevivem porque são resistentes ao antibiótico ou ao remédio. Este exemplar resistente se prolifera e o remédio começa a perder eficácia. Logo, uma nova geração do micróbio resistente torna o remédio inútil e é preciso desenvolver outro mais forte que, por sua vez, vai alimentar o ciclo: nós mesmos produzimos micróbios (vírus, bactérias, fungos) crescentemente mortais.

Esses centros são os nossos hospitais, fábricas não de saúde, mas de lucros. Fazem parte do complexo médico-hospitalar, o segundo setor do grande capital que mais tem lucrado com a pandemia. O quanto isto ameaça a humanidade é difícil exagerar. Não percam um livro de Michel Odent, com edição pequena, mas com informações interessantíssimas: Poderá a humanidade sobrevier à medicina? O resultado, estamos colhendo de forma dramática nestes dias em que escrevo este texto. No Arquipélago de Fiji, no Pacífico, a perda de eficácia dos antibióticos está se tornando uma ameaça à estrutura de saúde do país. Quando estes micróbios resistentes se esparramarem pelo planeta, “voltaremos à idade das trevas na medicina”, alerta Dr. Paul de Barro, no The Guardian de 10 de setembro último. O que ocorre em Fuji é apenas o prolongamento do que já fazemos com a tuberculose, com a malária e com cerca de três dezenas de bacilos e uma infinidade de outros microrganismos. A diferença é que, agora, a escala está se tornando dramática.
 

Atingimos o ponto de não retorno?

Neste ano o degelo e o aquecimento na Groenlândia chegaram a um ponto irreversível. Independentemente do que façamos, as geleiras da Groenlândia irão desaparecer e logo, no verão, não haverá mais gelo no Polo Norte. Ainda não chegamos a este ponto na Antártida, mas os estudos mais recentes indicam que o degelo lá também se acelera além das previsões mais pessimistas. O gelo reflete o calor mais do que água. Com menos gelo, mais aquecimento e o ciclo se alimenta.

O aquecimento do planeta está provocando incêndios inimagináveis há alguns poucos anos. Hoje, 12 de setembro de 2020, os jornais noticiam que perto de 10% da população do Estado de Oregon, nos EUA, estão deixando suas casas às chamas! A Califórnia também arde. A Austrália que se incendiou o ano passado, se prepara para novos incêndios com a previsão de uma estação de seca prolongada. O mesmo com Portugal. A Amazônia, o Pantanal… Mas vocês já imaginaram incêndios gigantescos ao norte do círculo polar? Isso mesmo, próximo ao Polo Norte? Essa região do planeta ficou por milhões de anos sem incêndios e também por isso acumulou uma enorme quantidade de matéria inflamável em seu solo e subsolo. Essa matéria inflamável contém uma gigantesca reserva aprisionada de gás carbônico, o principal vilão (depois do capital) do aquecimento do planeta.

Pois bem, a Sibéria arde!! No ano passado liberou uma quantidade gigantesca, recorde, de gás carbônico e, neste ano, já liberou até agora 35% mais do que o ano passado! Mais gás carbônico, mais efeito estufa, mais aquecimento… mais incêndios. Onde isso irá parar?

As avaliações mais gerais são também reveladoras. Por exemplo: 68% da população natural no planeta foi eliminada desde 1970 (quando se iniciou a crise estrutural do capital). Esta devastação não apenas não está diminuindo, como ainda está aumentando seu ritmo. Os corais, os manguezais, os pântanos, as últimas florestas não plantadas pelos humanos, tudo está destruído ou será destruído nos próximos poucos anos. Na Europa e nos EUA, as abelhas estão morrendo como nunca, ameaçando a agricultura sem seu trabalho de polinização. Agricultores já pagam a criadores de abelhas em jamantas para levarem para suas fazendas os insetos. Na China, em algumas regiões a polinização está sendo feita… pelos humanos!!! Na Alemanha, o emprego de inseticidas provocou a matança de raposas e deu origem a uma praga de marmotas que está inviabilizando a agricultura em várias regiões. Pássaros morrem como nunca antes na Europa e na América como um todo.

A acidificação dos oceanos, a alteração das correntes marítimas, as mudanças nas massas atmosféricas, a presença praticamente universal de micropartículas de plásticos (que estão impossibilitando a reprodução de um sem número de organismo no solo), não apenas na natureza mas no interior das células humanas; as doenças que se multiplicam junto com as novas condições de vida (câncer, Alzheimer, Parkinson, diabetes), a atual geração de humanos com um terço já contaminado por chumbo na infância, etc.

É possível se continuar por muito mais, contudo, talvez já seja suficiente para que a questão não pareça nem exageradamente dramática nem exageradamente alarmista: chegamos a um ponto de não retorno e vamos fazer do planeta um ambiente inóspito aos humanos? Vamos sobreviver neste planeta? Estaria certo Elon Musk ao projetar foguetes para levar humanos a Marte, porque na Terra a nossa sobrevivência teria data para findar?

As leis gerais

As leis gerais, são gerais porque são gerais. Parece brincadeira, mas não é. Newton teve que explicar isso várias vezes com sua Lei da Gravitação. Marx, uma infinidade de vezes. Porque são gerais, tais leis estão sempre presentes; porque são gerais, não explicam, contudo, toda particularidade e singularidade de cada caso.

Em 1844, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx já anunciava claramente uma dessas leis gerais: com o ser humano é parte da natureza, destruir a natureza é destruir também o ser humano. E, ainda, como o ser humano é parte da natureza, a destruição do ser humano é também a destruição da natureza. Naqueles momentos em que ele estava abandonando o hegelianismo e iniciando seu aprendizado de economia, não podia ir mais longe. Mas, ao final de sua vida (na terceira edição do Livro I de O Capital), nos deu a sua versão final para esta lei: as relações sociais capitalistas, por serem relações concorrenciais que obrigam à busca de um lucro sempre crescente, não apenas fazem do ser humano um servo do capital, como ainda tornam as relações sociais essencialmente desumanas. Nós destruímos a natureza para produzir lucros e, em função dos mesmos lucros e pelas mesmas ações, destruímos a nós próprios, seres humanos. Nunca produzimos tanta riqueza, e jamais ela foi tão desigualmente distribuída! Nunca tantos passaram fome com tanta comida sobrando! Hoje temos mais suicídios do que mortos em guerras! No passado, nada houve de semelhante.

Essa é uma parte da essência da crise que vivemos.

A outra parte corresponde a uma outra lei geral, esta formulada pela primeira vez por Hegel: a totalidade é mais do que a soma das partes; o universal é a síntese, não a somatória, de suas partes. Essa síntese produz no universal determinações, qualidades, que não estão presentes nos singulares que o compõem.

Esta lei está presente em todo o universo. Que a água (uma totalidade composta por dois gases) possui propriedades distintas dos elementos que a compõe é uma manifestação particular desta lei geral. A vida é a qualidade peculiar de reproduzir a si própria de uma forma, a orgânica, de organização dos átomos que provêm da matéria inorgânica. Os processos sociais são sempre a síntese das consequências práticas dos atos singulares dos indivíduos concretos em tendências históricas universais. Portanto, também as qualidades das tendências históricas universais não estão sempre presentes em cada ato humano. A totalidade, sempre, é mais do que suas partes: é a interação destas que produz uma nova essência, uma nova qualidade, universal.

Teríamos hoje, com as alienações provocadas pelo capital, chegado ao ponto em que a totalidade do planeta adquiriu uma qualidade nova e tenderá no futuro a evoluir por processos que tornarão a vida humana cada vez mais difícil, senão impossível? Teríamos já chegado àquele ponto em que a tendência mais universal da evolução do planeta (e, claro, da própria humanidade) será composta por transformações tão abruptas e tão amplas que nossa forma de vida se tornará inadequada para sobreviver às novas circunstâncias?

Como sempre, porque ainda não aconteceu, o futuro não pode ser conhecido em sua inteireza. O que podemos, a partir do conhecimento do presente, é estimar algumas tendências futuras possíveis. A resposta a esta pergunta, portanto, apenas poderá ser conclusivamente dada no futuro. Isto, contudo, não invalida a questão: já atingimos o ponto de não retorno? Talvez. Mas uma coisa é certa: se não o atingimos, nunca estivemos tão próximos de o atingir.

As duas leis gerais nos sinalizam: sem a superação do sistema do capital, nosso futuro não promete nada de bom para a humanidade.

Quanto à crise econômica? Um tsunami econômico está sendo gestado com a injeção de trilhões de dólares e euros no mercado mundial. Mas, isto, no momento, sequer é a maior preocupação. Era em 2019. Hoje a situação geral é tão mais grave, que a crise econômica deixou de ser a maior das preocupações. O que não significa que não venha a se tornar dramática no futuro próximo.

Material em que se baseia a NL:

1) https://www.cadtm.org/A-pandemia-do-coronavirus-e-parte-de-uma-crise-multidimensional-do-capitalismo

2) Science, 16 de Abril de 2020: Thailand scrambles to contain major outbreak of horse-killing virus. Christa Lesté-Lasserre.

3) New York Times, 25 de maio 2020. Wealthiest Hospitals Got Billions in Bailout for Struggling Health Providers. por Jesse Drucker, Jessica Silver-Greenberg and Sarah Kliff.

4) Nature, 26 June 2020: World’s second-deadliest Ebola outbreak ends in Democratic Republic of the Congo, por Amy Maxmen

5) Nature, 13 de agosto de 2020: AIDS, Malária and Tuberculosis are surging.

6) Nature, 10 de setembro 2020: 10 September 2020: The Arctic is burning like never before — and that’s bad news for climate change.por Alexandra Witze

7) Nature, 10 de setembro 2020: Wildlife in ‘catastrophic decline’ due to human destruction, scientists warn. por By Helen Briggs BBC

8) Nature, 20 maio 2020: 04 May 2020: Profile of a killer: the complex biology powering the coronavirus pandemic. by .David Cyranoski

9) The Guardian, 10 de setembro de 2020: Rampant destruction of forests ‘will unleash more pandemics’ por Robin McKie

10) The Guardian, 13 de maio 2020: Microplastics discovered blowing ashore in sea breezes . Por Karen McVeigh. @karenmcveigh1

11) The Guardian, 30 Julho de 2020: One in three children have dangerous levels of lead in their blood . Por Fiona Harvey.

12) The Guardian, 27 de maio de 2020: ‘Unstoppable’: African swine fever deaths to eclipse record 2019 toll. Por Michael Standaert

13) https://www.economist.com/graphic-detail/2020/08/25/the-greenland-ice-sheet-has-melted-past-the-point-of-no-return

14) The Economist, 22 de Agosto de 2020: How viruses shape the world. They don’t just cause pandemics.

15) The Guardian, 10 de setembro de 2020. Superbugs’ a far greater risk than Covid in Pacific, scientist warns. por Sheldon Chanel in Suva e Ben Doherty

16) “Pode a humanidade sobreviver à medicina?” por: Michel Odent. https://www.institutomichelodent.com.br/livraria-imo.

17) https://observador.pt/2019/09/11/bacterias-estao-cada-vez-mais-resistentes-a-antibioticos/

Falando nisso…

Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?

Gostaríamos de indicar o livro “Abaixo a democracia! Viva a Comuna!”, escrito por Sergio Lessa.

Sobre a autor: Sergio Lessa é membro do Coletivo Veredas e estudioso da obra de Lukács.

Resumo: O Texto de Combate “Abaixo a democracia! Viva a Comuna!” Procura responder às seguintes questões: Há uma alternativa à democracia que não seja a ditadura? É possível outra forma de organização da sociedade que não seja nem ditadura nem democracia? A resposta é positiva. Há, sim! Existe sim uma outra organização social que não é nem a democracia nem a ditadura. E é muito superior tanto a uma quanto à outra: é a Comuna.

Edição: 2017, impressa

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