03/11/2020
Não há dúvida de que a grande esquerda rejeita a falsa ideia que atribui a causa da crise econômica atual às necessárias medidas de isolamento social amplo, no momento presente. Não é raro ouvir a “esquerda progressista”, iludida com as possibilidades da atuação do Estado a favor do trabalho, combater com afinco essa ideia e exigir do Estado e de seus representantes medidas paliativas para enfrentar a crise atual. Mesmo o liberalismo mais racional e humanizado rejeita a ideia de que foram as medidas de quarentena que geraram a crise econômica atual.
Porém, liberais e progressistas caem no grave equívoco de atribuir a causa da crise à pandemia. Afirmar que “a doença gera a crise” ou que encaramos uma “crise econômica decorrente da pandemia” simplifica e distorce o real problema que enfrentamos e contribui para continuarmos em busca de “soluções” que só ajudam a nos afogar mais ainda no lamaçal do pântano em que nos encontramos. Partindo desse entendimento, toda e qualquer ação que tenha o objetivo de combater a atual crise está fadada ao fracasso, pois a raiz dessa crise, assim como as outras crises econômicas do sistema capitalista que a humanidade enfrentou, é muito mais profunda, antiga, e persistirá ainda que superemos a pandemia da vez, se não compreendermos e atacarmos suas razões mais essenciais.
Ao contrário de liberais e progressistas, Bolsonaro, seus seguidores mais fanáticos e outras figuras sem escrúpulos defenderam descaradamente a economia em oposição às vidas humanas, chegando inclusive a sugerir que teria sido a quarentena – estabelecida pelos governadores dos estados para conter o avanço da Covid-19 no país – que havia desencadeado a crise econômica atual. O presidente Bolsonaro, mais preocupado com a crise econômica durante seu governo do que em pensar em soluções para conter o avanço do contágio e das mortes causadas pelo novo coronavírus, eternizou seu desprezo pela vida humana através do seu famoso “e daí?”.
No final de abril deste ano, diante de milhares de mortes no país e após ter hesitado gastar recursos do Estado com o auxílio emergencial que conhecemos hoje, Bolsonaro soltou a seguinte frase, ao ser questionado sobre um novo recorde diário de mortes: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, como se não fosse responsabilidade do Presidente da República cuidar das necessidades dos indivíduos de seus país, cuidar da saúde da população…
E, de fato, não é! Vamos explicar o porquê.
Apesar de tudo, esse descaramento, esse cinismo do Bolsonaro e do bolsonarismo tem um pé na realidade: ele expressa de modo mais claro o cinismo, o descaro, da lógica de funcionamento da sociedade capitalista. Enfatizamos: apenas um pé; pois, todo o restante do corpo paira bem distante do real. O cinismo de seu discurso, por vezes, se aproxima mais da realidade do que o discurso da grande esquerda que tenta perfumar uma realidade já podre e que se apoia em instituições em decomposição – as mesmas que a família Bolsonaro tenta se apropriar e dominar.
Em Miséria da Filosofia, Marx faz um alerta: “não protestemos tanto contra o cinismo. O cinismo está nas coisas, não nas palavras que o exprimem”. Sem deixarmos de abominar a figura de Bolsonaro e tudo o que ele representa, de abominar sua postura e linguagem descarada, é preciso reconhecer duas coisas: 1) a sociedade capitalista, assim como Bolsonaro, também diz “e daí?” para as vítimas da Covid-19 em todo o mundo, ela se preocupa muito mais com a continuidade de sua economia; 2) nem o Estado, nem seus representantes, como Bolsonaro, têm como prioridade a função de atender às necessidades dos seres humanos, pois o Estado capitalista funciona como instituição que gerencia as ordens do capital, buscando sempre atender prioritariamente ao que for necessário para a manutenção do modo de ser da economia capitalista e sua expansão.
O primeiro ponto acima responde porque o cinismo, a falta de escrúpulos, o cretinismo de Bolsonaro melhor se aproxima do cinismo da realidade social atual do que a maquiagem humanizadora que a grande esquerda, conscientemente ou não, insiste em aplicar nas “alternativas” dentro da sociedade atual. O segundo ponto explica por que não é responsabilidade do presidente, assim como não é de nenhum dos representantes do Estado, atender primeiro às necessidades das pessoas – as quais só são atendidas quando atendem ao mesmo tempo e de modo prioritário aos interesses e necessidades do capital. Explicaremos melhor.
Na sociedade que tem como núcleo o modo de produção capitalista, priorizar a economia em detrimento das necessidades humanas relacionadas à saúde, à alimentação etc. faz parte da lógica social, é uma necessidade do modo de produção e reprodução dessa sociedade. E o Estado capitalista faz parte dos complexos sociais que servem à manutenção da atual ordem das coisas, complementando e favorecendo sempre o capital. Por isso, frente à gravidade da situação e a urgência de que os hospitais fossem abastecidos com medicamentos e aparelhos etc., não é de se estranhar tanto a baixa execução orçamentária dos recursos destinados ao enfrentamento da Covid-19 e os casos de corrupção envolvendo esses recursos, empresas e funcionários do Estado, prejudicando no fim de tudo a população, que deveria ter sido beneficiada.
Assim como na mercadoria individual, elemento mais simples da forma sobre a qual se apresenta a riqueza dessa sociedade, o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso – isto é, a troca de mercadorias se sobrepõe a utilidade da coisa trocada –, também a finalidade da produção capitalista total se volta para a acumulação de mais mais-valia – que tem início e se realiza através da troca de mercadorias, embora só tenha origem no momento em que a mercadoria é produzida – e põe em segundo plano a satisfação das necessidades humanas. A mais-valia (que identificamos ao lucro apenas para simplificar) corresponde ao valor a mais que o capitalista retira do mercado com a venda da mercadoria final, depois de ter já lançado valor no mercado ao comprar força de trabalho para viabilizar a produção de sua mercadoria.
A importância da troca de mercadorias em detrimento da utilidade do produto vendido ou comprado nessa sociedade se revela, por exemplo, na figura de um vendedor ambulante que vai de pessoa em pessoa com suas mercadorias, sob sol ou chuva, buscando efetivar uma venda, e, por vezes, implorando que as pessoas comprem suas mercadorias apenas para ajudá-lo. Revela-se também no desespero de uma vendedora ambulante faz de tudo para evitar que suas mercadorias lhe sejam tiradas quando são confiscadas por algum órgão estatal – que visa proteger, da concorrência do vendedor ambulante que vende o produto a um preço mais barato, os comerciantes regularizados e que pagam as devidas taxas e impostos ao Estado. Sob a inspiração do estilo de Marx, afirmamos: a mercadoria é tudo, nossos homens e mulheres nada.
As mercadorias que esses dois ambulantes vendem não se tratam das mesmas mercadorias que vão satisfazer suas próprias necessidades e de suas famílias. Essas mercadorias servem apenas de meio para que esses ambulantes, conseguindo algum lucro com a compra e venda das mercadorias, consigam algum dinheiro para trocar pelas diversas mercadorias que irão satisfazer suas necessidades. Portanto, a troca de mercadorias é mediação necessária para que os ambulantes possam satisfazer suas necessidades.
Utilizamos o ambulante para demonstrar a importância da mercadoria, mas essa troca é exigida para todos os indivíduos dessa sociedade, ainda que sob formas diferentes. Os trabalhadores assalariados têm de trocar a mercadoria-força de trabalho por um salário, para depois adquirir as mercadorias necessárias para a sua subsistência e da sua família. O capitalista tem de trocar seu dinheiro por mercadoria meio de produção e pela mercadoria força de trabalho para se apropriar da mais-valia produzida por seus trabalhadores e trocar por mercadorias que satisfaçam suas necessidades. Mesmo o trabalhador assalariado que é proletário, isto é, o verdadeiro e único produtor do conteúdo material de toda a riqueza dessa forma de sociedade, tem de vender sua força de trabalho como todos os assalariados e trocá-la por um salário – todas as relações sociais são mediadas pela mercadoria, inclusive a que dá origem a toda a riqueza social e que se realiza através da exploração do trabalho proletário pelo capital.
Nessa troca, a utilidade nunca é determinante. A mercadoria – seja ela de qualquer tipo, incluindo a mercadoria força de trabalho – é (re)produzida e trocada com objetivo de que mais mais-valia seja produzida e mais capital seja acumulado. A finalidade da produção não é a satisfação das necessidades humanas, mas a extração de uma quantidade maior de mais-valia a fim de garantir uma maior expansão do capital. Da mesma forma, de um modo geral, não serão as decisões mais úteis à sociedade que serão tomadas pelas personificações do capital situadas nos mais variados cargos estatais, mas sim as que melhor atendam as necessidades de sobrevivência do sistema do capital e sua a incessante finalidade de acumulação de mais mais-valia.
A busca por essa finalidade não cessa de modo algum, não tolera interrupção – se diminui sua velocidade de um lado, aumenta a intensidade de outro, tem de haver sempre a contrapartida para o capital. Para que a dinâmica do capital não se interrompa, para gerenciar os problemas que aparecem durante a reprodução da economia capitalista, para fornecer uma contrapartida, o Estado e seus representantes estão sempre, queiram ou não, à disposição do capital. E não há necessidade humana alguma que faça a sociedade capitalista mudar de direção rumo a seu primeiro e último objetivo: acumular mais e mais mais-valia.
A frieza, a voracidade e o descaso com os seres humanos estabelecidos pela forma de organização econômica da sociedade capitalista se expressa, no campo da política, na frieza e no cinismo de alguns de seus representantes mais reveladores, Bolsonaro é um deles.
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Estado e Capital: uma coexistência necessária”, escrito por Fernando de Araújo Bizerra.
Resumo: “Escrito com sólida fundamentação teórica, oferece aos leitores ferramentas necessárias para apreender que Estado e capital, em todos os estágios históricos do desenvolvimento capitalista, se relacionam reciprocamente. Esboça elementos que evidenciam ser o Estado Moderno um produto socialmente construído de que se vale a burguesia para se organizar como classe dominante e exercer dominação sobre os trabalhadores de modo a subordiná-los aos seus interesses particulares”(Reivan Marinho de Souza).
Edição: 2016, impressa