06/02/2021
“O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui”
(Shakespeare – A Tempestade)
Em A tempestade, peça de Shakespeare, um avassalador e inesperado temporal atinge o barco de uma comitiva real em que viajava parte da nobreza italiana. O barco é destruído pelo furor das ondas e seus passageiros lançados ao mar revolto. Ferdinando, filho do rei de Nápoles e um dos que estavam na embarcação, ao perceber o terror dos raios e do mar bravio, exclama a frase que iniciamos o presente diálogo, sobre o inferno e seus demônios. No enredo do dramaturgo inglês, tal tempestade foi artificialmente produzida por Próspero, antigo duque de Milão. O intuito desse ato foi a vingança, uma vez que o duque havia anteriormente sido golpeado de seu poder, exatamente por aqueles que estavam no barco devorado pelas ondas. Sua realização foi possível em virtude dos conhecimentos de feitiçaria de Próspero, que ainda contou com o auxílio da figura mítica de Ariel. Porém, no desenrolar da trama, descobre-se que ninguém morre no episódio da desgraça ocorrida no mar. A salvação dos náufragos, é que o mesmo Próspero, o que produziu a tempestade, também utiliza seus poderes mágicos para levá-los até uma ilha, lá adormecem até que o nobre feiticeiro decide acordá-los, todos salvos.
No mundo concreto de nossos dias, com a chegada da pandemia em 2020, inferno e céu continuam vazios, pois demônios e deuses não existem. Já a vida humana, foi violentamente sacudida por uma poderosa tempestade social, certamente menos improvável do que a ocorrida na peça. E, enquanto na obra de Shakespeare todos sobrevivem ao infortúnio no mar, as vítimas fatais da pandemia já somam ao final de janeiro de 2021, mais de 2 milhões em todo mundo.
A gênese de nosso flagelo não é proveniente de poderes mágicos, mas essencialmente das relações sociais vigentes, do acirramento de contradições originárias no processo de reprodução ampliada do capital e de sua substância destrutiva. Em seu núcleo mais duro e profundo, a origem dessa brutal crise sanitária, sequer é meramente decorrente da capacidade de transmissão do vírus, não é simplesmente um problema ”natural”. Sua gênese está numa convergência de crises, principalmente ambiental, articulada essa com as contradições decorrentes da reprodução ampliada de capital. Mas, para sermos justos com as lições recentes da história, já não era possível ignorar que há algumas décadas, espessas nuvens de uma grave catástrofe social e ambiental, já haviam se tornado mais escuras e densas.
Praticamente um ano após seu início dessa crise, sua materialização vai além da perda de milhões de vidas, com severos desdobramentos na saúde, no aumento do desemprego, na ampliação da pobreza, no aprofundamento da desigualdade e num extenso cortejo de outras misérias. Estimuladas pela produção não de necessidades humanas, mas de mercadorias, as bases da atual pandemia, enquanto uma expressão da barbárie, se encontram na estrutura dessa forma de sociabilidade. Soma-se a isso, o agravamento das contradições da própria acumulação expansiva capitalista, potencializas pela crise estrutural do capital.
Em síntese: a substância destrutiva do capital deixou de ser uma possibilidade com emergentes sinais de precipitação, tornou-se uma tormenta que desaba sobre a humanidade.
Nesta nossa tempestade social, não está facultada a possibilidade de saída para uma ilha, como foi possível no enredo de Shakespeare. Entretanto, os porta-vozes dos interesses do capital, sejam midiáticos ou intelectuais, já apontaram a matriz orientadora das soluções a serem buscadas para superação dos males da pandemia: a ciência. De um lado, os telejornais e os analistas de plantão da mídia reverberam esse caminho como o único capaz de salvar a todos. Vacina, inteligência artificial e robótica se apresentam como soluções. Do outro lado, mas na mesma direção, parte importante da academia acentua duas palavras mágicas: “ciência e inovação”.
O aspecto de fetiche nas potencialidades cientificas está em considerar a existência de um poder quase supremo da ciência e das inovações tecnológicas. Com efeito, a ciência acaba sendo tratada como uma espécie de Deus, apenas com certas limitações. Seu caráter divino seria por não está submetida a nenhum domínio, nem dever obediência a ninguém, a não ser o de seguir seu próprio e benéfico propósito. Portanto, tal concepção promove uma imunidade ideológica ao desenvolvimento da ciência, considerando que seu avanço seria uma espécie de locomotiva em cima de trilhos previamente assentados.
O problema é que o “Deus” da onipotência científica capitalista falhou e essa tal locomotiva descarrilhou. Ao invés de soluções para a humanidade, a vida humana foi lançada numa fase potencialmente perigosa para sua continuidade, e a tragédia social se agiganta dia após dia. Além do mais, considerando a sequência de novos vírus que surgiram nas últimas décadas e o horizonte de agravamento da questão ambiental que permanece em curso, essa pode ser apenas uma primeira pandemia no século XXI, talvez em breve sequenciada por outras.
A questão é que ao mesmo tempo que a reprodução capitalista se desenvolve com limites expansionistas cada vez mais estreitos, também inflige ao ser humano uma vida embrutecida e despoticamente alienada. É esse o solo social em que a ciência o desenvolvimento tecnológico acaba por exercer sobre a consciência dos indivíduos uma perspectiva muito além de seus limites.
Nesse ponto, cabe imediatamente um alerta. Refletir a respeito dos limites e possibilidades da ciência, bem como sobre o solo ontológico em que essa se desenvolve, significa compreender que não é o desenvolvimento científico que determina como serão construídas as relações sociais. Ao contrário, são as necessidades conjunturais de reprodução social, estabelecidas essencialmente pelas classes possuidoras dos meios de produção, que determinam os mecanismos científicos e tecnológicos possíveis para atingir seus objetivos. Com isso, apenas sinalizamos que esse debate não possui sequer um átomo de relação com o negacionismo que supura pelos esgotos obscurantistas.
Obviamente que não se trata de condenarmos a ciência em si, o avanço tecnológico ou as inovações realizadas, como as culpadas pela não superação das contradições sociais. Colocar a tecnologia e a ciência como as vilãs, por exemplo, do desemprego e da miséria; ou inversamente, tratá-las como as salvadoras, é desconsiderar o movimento real da luta de classes. Dizer também que não há nenhuma rota alternativa possível, seria só reafirmar o postulado burguês que considera a sociedade capitalista como o limiar máximo alcançado pelo homem. A opção de redenção humana e da ciência é possível, mas pressupõe, necessariamente, a superação radical do capital e a erradicação completa de suas bases. No caso da ciência, significa retirar sua subordinação em relação a propriedade privada e aos determinantes alienantes da mercadoria. Mas na sociedade capitalista, lar sagrado da vendabilidade universal, isso é ontologicamente impossível.
Apenas como um exemplo instigante, é curioso analisar um dos mais relevantes elementos “simbólicos” da ciência burguesa, a maior honraria ofertada aos cientistas, o Prêmio Nobel. O reconhecimento é dado sob a forma de uma determinada soma de dinheiro para os escolhidos. Esse dinheiro existe e é o resultado, em parte, do investimento bastante lucrativo que Nobel teve com sua maior invenção, a dinamite. Nada melhor para ilustrar as determinações da ciência na sociedade capitalista, que essa combinação: dinheiro, lucro e instrumentos de destruição.
Como não chegamos a essa tempestade social em razão de fatores míticos ou naturais, e iniciamos esse texto com a frase da peça de Shakespeare, é válido mais uma brevíssima reflexão. O momento que vivemos de pandemia é de risco para existência humana. Encontra-se no horizonte a possibilidade de destruição das bases de sua sobrevivência e, portanto, essa é uma expressão explícita e sem “máscaras” da barbárie. Dessa forma, tratar a ciência como a promotora das soluções humanas para um mundo pós-pandemia, talvez seja tão perigoso quanto acreditar como real os poderes sobrenaturais de Próspero, tanto de criar, como de resolver tempestades ou crises.
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Questões contemporâneas e o Serviço Social em tempos de crise estrutural do capital”, organizado por Ana Paula Ferreira Agapito, Liana Amaro Augusto de Carvalho, Milena da Silva Santos e Silvana Mara Morais dos Santos.
Resumo: Este livro é uma coletânea de textos, os quais apresentam reflexões sobre temas contemporâneos, que permeiam o debate do Serviço Social brasileiro inserido num contexto socioeconômico, político, cultural e ideológico. As contribuições acadêmicas científicas dos/as autores/as de cada artigo agregam significado para compreender o desencadeamento da crise estrutural do capital em suas múltiplas determinações. É indispensável o debate crítico, reflexivo e propositivo sobre o trabalho e o sentido atual do pauperismo, a “questão social”, a precarização do trabalho e o conservadorismo, a educação no contexto da crise estrutural do capital e do avanço do conservadorismo, a formação profissional em Serviço Social alinhada ao projeto ético- político diante de “tempos ultraconservadores”, a conjuntura brasileira pós-golpe de 2016, a eleição presidencial em 2018, e o debate feminista, de raça e sexualidade no Serviço Social. As contribuições teórico-críticas sobre estes temas podem possibilitar aos assistentes sociais, discentes, docentes, pesquisadores e outras categorias profissionais afins, desmitificar as particularidades e singularidades das contradições vigentes na totalidade social capitalista e suas implicações concretas na realidade brasileira.
Edições: 2020, impressa