18/03/2021
O mecanismo… da pandemia
As pandemias são um fenômeno biológico bastante simples. Um vírus é um dos menores seres vivos. Centenas, por vezes mesmo milhares de vezes, menor do que uma célula das plantas e dos animais. Ele não passa de uma camada muito fina (algumas poucas moléculas e átomos) que envolve uma molécula com seu código genético, chamada de RNA.
Ao entrar em contato com uma célula, a camada externa do vírus produz uma reação química com a membrana externa da célula e abre nela uma brecha pela qual injeta seu RNA. Por uma série de reações químicas também conhecida, o RNA começa a reproduzir idênticos RNAs, os quais se aproveitam das gorduras, proteínas e outras moléculas e átomos que existem na célula invadida e formam milhares de novos vírus, em princípio cópias exatas do vírus invasor. Com o tempo a célula invadida explode e os novos vírus são liberados, infectando novas células. No limite, este processo continua até a morte do ser vivo. Contra este mecanismo de reprodução do vírus, o corpo possui várias defesas. A mais importante é a produção de anticorpos que nada mais são que moléculas, os anticorpos, que reagem com a membrana externa do vírus, o impedindo de se reproduzir. A maior parte das vacinas atuam nesse processo: estimulam o corpo humano a produzir os anticorpos necessários para impedir a reprodução do vírus.
Uma das vantagens do vírus é que esta replicação do RNA nem sempre acontece sem acidentes. Pelo contrário, há uma taxa mais ou menos fixa de “acidentes”. Esses acidentes acontecem quando o RNA não “copia” a si próprio corretamente e surge um RNA um pouco diferente. Na enorme maioria das vezes, esse erro diminui a capacidade de reprodução da nova variante do vírus e ela termina desaparecendo. Mas algumas vezes, por mero acaso, em uma taxa que também pode ser matematicamente prevista como possibilidade, resulta em um vírus que consegue se reproduzir mais eficientemente, quer porque consegue “enganar” os anticorpos, quer porque se replica mais rapidamente no interior das células.
Um segundo problema é que uma célula pode ser invadida, ao mesmo tempo, por diferentes tipos de vírus (por exemplo um doente com o HIV pode se contaminar com o vírus da gripe) e, por vezes, até mesmo com vírus diferentes e provenientes de distintos animais. Essa mistura de RNA de distintos vírus na mesma célula faz com que, através de “erros” e “acidentes”, uma parte do RNA de um vírus pode ser transferido para outro vírus, assim criando um vírus ainda mais diferente. Por vezes, nem sempre, ainda mais perigoso para os humanos. Por exemplo, um vírus da gripe que possui a capacidade de se propagar entre os humanos, contamina um animal com um vírus que ainda não se transfere para os humanos. Com uma troca de partes do RNA, pode o vírus exclusivo do animal se apoderar de uma parte do RNA do vírus da gripe e adquirir a capacidade de infectar humanos. Foi isso, por exemplo, que aconteceu com o Ebola, o HIV e também com o SARS-COV-2, o atual da nossa epidemia presente.
Esses “erros” ou “acidentes” são denominados de mutações. Quanto maior a população do vírus, maior a possibilidade de novas variantes e, assim, maior a possibilidade de o vírus se tornar mais agressivo, mais mortífero ou danoso ao ser vivo infectado. É isto que está ocorrendo agora com o SARS-COV-2: e isto era previsível. Com o aumento da população de vírus e sua generalização pelo planeta, novas e mais agressivas variantes iriam necessariamente surgir. O que assistimos nesta nova “onda” na passagem de 2020 para 2021 é precisamente isto: as novas variantes surgiram e se propagam com uma velocidade ainda maior que a variante da primeira “onda”.
O que determina o tamanho da população de um vírus – e portanto, a probabilidade de mutações que o tornam mais eficiente – é a quantidade de “comida” que ele tem à sua disposição. Em uma floresta em que há muitas diferentes espécies de plantas, a “comida” tende a ser menos disponível do que em uma plantação de soja, por exemplo, em que milhares de quilômetros quadrados são ocupados com plantas idênticas do ponto de vista genético. Quando estes milhões de toneladas da mesma soja, com o mesmo código genético, são estocadas em enormes silos e, depois, alimentam 310 milhões de porcos na China, mais 148 milhões na União Europeia e outros 78 milhões nos EUA (ou os 19 bilhões de galinhas), todos confinados e geneticamente muito semelhantes, temos um cenário ideal para um novo vírus contar com uma rápida difusão e mutação. As coisas não melhoram quando toda essa comida alimenta bilhões de seres humanos amontoados aos milhões em cidades com as piores condições de vida e trabalho… Quando tudo isso ocorre, os vírus encontram um ambiente ideal para ]o seu crescimento populacional e, portanto, para a gestação de novos vírus e de novas variantes [1].
Em resumo, o desenvolvimento do capitalismo criou um planeta que é um ambiente ideal para a proliferação de vírus e, por isso, para o surgimento sucessivo de pandemias. O The Guardian inglês não nos deixa mentir: “O impacto da humanidade no mundo é intenso, com a população animal tendo caído em média 68% desde 1970 e a destruição das florestas continuando aceleradamente – alguns cientistas pensam que uma sexta extinção em massa está em andamento e se acelerando. Hoje, apenas 4% dos mamíferos do mundo são selvagens, amplamente superados por humanos e pelos animais que criamos para a alimentação.” (2 de fevereiro de 2021)
O mecanismo desta criação é também simples: a diversidade genética do planeta vai sendo substituída por uma homogeneidade ideal para a reprodução dos vírus. Isto ocorre com uma velocidade crescente e, por isso, desde a segunda metade do século passado temos conhecido pandemias com uma frequência que nunca houve antes na história. Isto tudo alertado por vários cientistas e organizações internacionais e também em um livro muito importante, já em 1994, por L. Garrett, The coming plague (Penguin Books, Nova Iorque)
Não foi por falta de aviso que os capitalistas nos meteram nesta enrascada.
Do HIV à Holanda de janeiro de 2021
No passado, havia poucos animais, criados em pequenas unidades produtivas distantes uma das outras. A enorme maioria dos seres humanos habitavam o campo ou pequenas vilas. Quando surgia uma doença entre os animais e mesmo quando esta passava aos humanos, era mais difícil para o vírus se esparramar. Mais difícil, mas não impossível: lembremos da Peste Bubônica na Idade Média.
No caso do HIV, hoje sabemos como começou. De uma forma muito parecida ao surgimento do Ebola e do SARS-CoV-2. Entre os primatas superiores da África estes vírus eram presença comum (eram endêmicos). A expansão do capitalismo na África destrói a economia tradicional, voltada ao atendimento local, e a substitui pela produção em larga escala para o mercado mundial. A miséria resultante do êxodo rural concentrando nas cidades uma população desempregada e miserável, somado à substituição das florestas pela monocultura moderna, tem dois efeitos. Faz com que os humanos precisem cada vez mais se alimentar de macacos para sobreviver. Faz também com que os macacos, com a destruição das florestas, tenham que conviver cada vez mais próximos dos humanos. Nestas condições, é cada vez mais fácil que uma mutação criando um vírus do HIV ou do Ebola capaz de contaminar os humanos resulte em uma pandemia entre os humanos. E isto só piora na medida em que o capitalismo avança. Exatamente o mesmo ocorreu com o SARS-CoV-2. Endêmico entre espécies silvestres na China, adquiriu a capacidade de se propagar entre os humanos e voilá, a nossa pandemia atual.
Ameaça ocorrer, com um novo vírus, nestas semanas do janeiro de 2021 na Holanda! As informações vêm todas da reportagem do The Guardian de 23 de janeiro último, intitulada “’We need answers’: why are people living near Dutch goat farms getting sick?”, por Sophie Kevany.
No início de 2008, após um período de rápida expansão da criação de cabras e um boom na produção de leite caprino, uma estranha doença entre as cabras se converteu, em maio daquele ano, em um surto da “Febre Q” que se proliferou também entre vacas e cordeiros. “Milhares de pessoas” foram infectados, 95 delas faleceram e o governo holandês sacrificou 50 mil cabras em 55 fazendas para conter o surto.
Desde 2018, a situação tornou-se novamente preocupante. Um surto de pneumonia na mesma região da Holanda está relacionado às fazendas que criam cabras. Quando maior a proximidade à uma criação de cabras, a probabilidade de se adquirir a nova doença cresce de 20 a 55%. A pneumonia não é a “Febre Q” de uma década atrás, mas pode certamente ser uma nova doença humana de origem em animais, dizem vários cientistas que estudam o problema citados pelo The Guardian.
Pode ser, talvez seja mesmo o mais provável, que a nova doença na Holanda não se converta numa pandemia planetária. Contudo, o mecanismo que dá origem às pandemias está lá em funcionamento. É assim que novas epidemias serão – com certeza estatística – geradas. Nós não sabemos apenas onde elas vão aparecer, quando vão surgir e quão mortais serão. Contudo, a probabilidade de novas pandemias neste nosso mundo atual é tão expressiva que a questão não é se teremos novas pandemias, mas quando e onde elas vão surgir.
Para que servem as vacinas?
São excelentes negócios! Elas servem para duas coisas – e apenas para duas coisas: emergencialmente, para tentar algum controle da epidemia do dia. Isto é possível. Em segundo lugar, para gerar enormes lucros e promover uma concentração de capital nunca antes visto. Não é isso que está ocorrendo a olhos vistos? Podem elas ser a solução para esta sinuca de bico em que o capitalismo nos meteu? Certamente que não. As epidemias surgirão no futuro tão certo quanto o Sol nascer a leste, pessoas continuarão morrendo e o capital continuará se aproveitando desta “oportunidade” para se acumular ainda mais. O mundo que conhecemos está em desaparecimento acelerado.
“A pandemia é o Covid-19, a doença é o capitalismo”, lê-se em cartazes nas paredes de Berlim. Nada mais verdadeiro! Caso não destruamos o capital, ele destruirá a humanidade.
Referências externas
[1] Veja, para maiores informações atualizadas, https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-01-21/nelly-e-erik-as-inquietantes-mutacoes-do-coronavirus-em-manaus-que-ameacam-piorar-a-pandemia.html.
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Lukács: trajetória e concepção de alienação”, escrito por Marteana Lima.
Resumo: Este livro, com o objetivo de contribuir para a compreensão do complexo da alienação em Lukács, examina a relação entre a concepção de alienação do filósofo em História e consciência de classe e em Para a ontologia do ser social e aspectos de seu caminho até Marx. A trajetória de György Lukács contém uma dinâmica peculiar, com viragens, rupturas e desdobramentos que se relacionam num processo dialético de continuidade na descontinuidade e de descontinuidade na continuidade. Ao longo dessa trajetória, a relação do filósofo húngaro com o pensamento de Marx revela-se em três momentos: o pré-marxismo, o protomarxismo e o marxismo da maturidade. A concepção lukacsiana de alienação altera-se ao longo de sua trajetória, especialmente após a viragem ontológica de 1930.
Edições: 2020, impressa