Coletivo Veredas Newsletter NL 28 – Estado, bolsonarismo e religião

NL 28 – Estado, bolsonarismo e religião

21/08/2021

Se você é religioso(a) mas não é bolsonarista e já se sentiu incomodado(a) pelo título, peço apenas um pouco de paciência, no decorrer dessas linhas ficará melhor entendido em que termos se dá essa relação, ficando claro que não se trata de nenhuma arbitrariedade ou insulto para com vós.

Sabe-se, a partir do materialismo histórico-dialético, que a religião no seio do modo de produção capitalista cumpre uma função social determinada, qual seja, de “ópio do povo” e de denúncia de uma situação real de miséria e exploração. Depois de Marx, Lukács afirma com base no primeiro, que o reflexo religioso tem como gênese o trabalho e como campo fértil de florescimento desenvolvimento o limitado conhecimento do mundo circundante em um período primitivo da humanidade. Ou seja, é no terreno da ignorância, do ainda não conhecido, que floresce a religião (entre outras coisas).

Isso por si não torna a religião ou o reflexo religioso de modo geral como socialmente negativo, tanto é que, na maior parte da história da humanidade foi a leitura de mundo religiosa que deu respostas para os problemas do cotidiano, sobre as melhores épocas de plantar, de colher, onde caçar, etc. Acontece que conforme as sociedades se desenvolvem, o domínio da humanidade sobre a natureza do ponto de vista de conhecer o mundo exterior de modo mais objetivo e desantropomórfico, vai paulatinamente proporcionando conhecimentos mais precisos e que respondem melhor aos problemas postos pelo cotidiano.

Por exemplo, não muito tempo atrás, nos interiores mais esquecidos e pobres do Ceará, lugares onde o acesso a saúde pública era praticamente inexistente, ao primeiro sinal de cobreiro procurava-se imediatamente a rezadeira. “Dependia-se”, a partir desse ponto, de intervenções místicas que tinham por fundamento uma visão religiosa do mundo. Este era o que se tinha de mais avançado ao qual se podia recorrer, era a melhor resposta para aquele problema.

Hoje, sabe-se que se trata de uma doença infecciosa chamada herpes-zoster, causada pelo vírus varicela-zoster. Existe hoje também, mediante pesquisas científicas, tratamento, medicamentos para combater essa doença, de forma objetiva e desantropomórfica. Atualmente, portanto, esta é a melhor resposta para aquele mesmo problema que antes se “resolvia” pela via religiosa. Pode até se procurar as rezadeiras que ainda existem, por recomendação dos mais idosos, mas não se abre mão da consulta médica e do fármaco.

Como dissemos linhas atrás, a religião nasce e se desenvolve no terreno da ignorância e do desconhecido, e aqui entenda-se ignorância no sentido mais literal da palavra, sem qualquer julgamento moral. Ora, se é assim, também a moral religiosa e por decorrência os valores religiosos devem sua existência e vigor também a esse campo do ainda não conhecido, no qual reina a ignorância sobre o entorno, sobre a natureza exterior e relações sociais de modo geral.

Posto de outro modo, quanto menos se conhece do mundo objetivamente, imanentemente, desantropomorficamente, mais fervorosamente o povo se agarrará nos valores e na moral religiosa, tendo esta como parâmetro para todas as suas cotidianas atividades. A tendência é que quanto mais atrasado seja um país do ponto de vista da instrução, da educação, do desenvolvimento de suas forças produtivas, mais forte ali serão os valores religiosos, mais presente no cotidiano das pessoas será a visão religiosa do mundo.

Pesquisas já realizadas comprovam que quanto menor a distribuição de renda, quanto mais baixo o desenvolvimento das forças produtivas locais, por consequência, mais baixa qualidade na instrução e mais pobre o país, maior a religiosidade de seu povo. É óbvio que para toda regra existem as exceções que servem justamente para confirmar tais regras.

Países como Itália e Estados Unidos representam bem essas exceções, e, em algumas análises o Brasil também é destacado como fora da regra geral por ter uma distribuição de renda e força produtiva muito a frente dos países mais pobres. Todavia, o país tupiniquim está longe do centro do capitalismo, orbitando sua periferia e sem perspectiva de avançar além dessa posição. Como já apontou Mészáros e outros teóricos nacionais, existiram condições históricas que impediram nosso país de emancipar-se política e economicamente, impedindo-o, como consequência, de alcançar o bojo do grande capital.

Atrasado politicamente e economicamente, o Brasil figura com enorme concentração de riquezas nas mãos de poucos figurões, enquanto a maioria da população sobrevive com menos de um salário mínimo. Nesse contexto, a educação e o desenvolvimento da ciência também se dão de maneira muito atrasada como consequência daquelas condições anteriores, o que deixa em aberto aquele campo fértil do qual falamos linhas antes, onde prospera a religiosidade. É claro que, pelas condições históricas em que se deu a formação do Estado brasileiro, este não conseguiu também se emancipar da religião.

Tudo bem, entendemos até aqui que a religião tem na ignorância e no “ainda não conhecido” seu campo fértil para se desenvolver, percebemos também, como reforço e consequência ao/do ponto anterior, que quanto mais atrasado política e economicamente é um país, a tendência é que seu povo seja mais religioso. Mas o que tudo isso tem a ver com bolsonarismo? Calma, estamos chegando lá.

Ainda não emancipado da religião enquanto Estado e na condição de país periférico do grande capital, o Brasil, desde sua invasão pelos portugueses, foi fundado na moral judaico cristã, da qual, repetimos, jamais se emancipou. Isso significa que apesar de não termos constitucionalmente uma religião de Estado, na prática acontece exatamente o inverso, as instituições de Estado, a maneira como estas se relacionam com a sociedade civil, os governos, etc, estão todos impregnados pela visão de mundo religiosa, dominantemente cristã.

Só a título de exemplo, podemos citar a bancada evangélica na Câmara e no Senado Federal, que propõem, defendem, votam e aprovam leis e congêneres com base em artigos de fé. Só para ilustrar podemos lembrar aqui da chamada “Lei da cristofobia”, que como não poderia ser diferente, parte dos mais esdrúxulos argumentos que ao final só reforçam o preconceito contra minorias religiosas e a hegemonia do cristianismo com destaque para as igrejas neopentecostais. Além disso, é claro, deixa transparecer todo o falso moralismo da elite brasileira.

A fatia mais conservadora, seja dos católicos ou dos protestantes, cada vez mais se apropria de espaços políticos e se torna mais poderosa e influente – vale lembrar que de poder e influência a igreja católica entende muito bem. Com a derrocada dos governos petistas, que não conseguiram e nem poderiam resolver as contradições sociais – sem falar dos casos de corrupção -, posto que para estas não existe saída pela política, começa a se avolumar e ganhar forma ideias mais à direita no espectro político brasileiro.

Nesse ponto, faz todo sentido que a fatia religiosa mais fanatizada se aproxime dessas ideias direitistas, haja vista estas também flertaram com o conservadorismo, recorrendo com frequência a discursos moralistas claramente alinhados com a manutenção da ordem. Desse caldo surge como refinamento entre religiosos fanáticos e direitistas conservadores: o bolsonarismo.

Todo bolsonarista que se preza, ou é religioso ou fanático, ou os dois, e ainda assume para si os ideias neoliberais, mesmo que estes pressupostos numa grande maioria dos casos vão de encontro com sua própria condição enquanto ser, negando sua existência material. É o que acontece, especialmente, em muitos interiores do Brasil onde chegou a onda bolsonarista. Nessas cercanias, muitas vezes sem entender o básico do que seja neoliberalismo econômico e político, estado mínimo, livre mercado, etc, trabalhadores que quase nada têm para subsistir hasteiam agora a bandeira do bolsonarismo.

Me permitam abrir um parêntese aqui, pois nesse ponto é impossível não nos questionarmos sobre os motivos pelos quais trabalhadores ,como no exemplo acima, são tão facilmente cooptados pela onda bolsonarista, ao mesmo tempo em que a teoria revolucionária tem tanta dificuldade de alcançar metros além dos corredores e salas de aula da universidade. Teoria essa que, para estes mesmos trabalhadores, é a teoria par excellence. Estaríamos, nós comunistas, falhando?

Retomemos o foco. Um movimento que concentra a religiosidade mais fanática aliada com ideias conservadores e viés político de extrema direita, não poderia deixar de ser negacionista, para usar um termo da moda. Esses três elementos caracterizam bem o bolsonarismo.

Por trás de tudo isso está a dominância de um irracionalismo completo diante das relações sociais, ou seja, estas não são de fato conhecidas por este movimento como um todo, e, quando o são por parte de alguns poucos, tal conhecimento é negado em prol da legitimação de ideias políticas, econômicas e outras que se aproximam do fascismo.

Dito de outro modo, o bolsonarismo surfa na ignorância sistemática e na negação dos avanços científicos, o que o torna um espaço bem aconchegante para a religião em seus fragmentos mais fanáticos e tresloucados, como o neopentecostalismo.

O grande problema aqui é justamente quando essa combinação quase mortal, que caminha de mãos dadas com a ignorância e irracionalidade, encontra seu lugar ao sol na política brasileira. A partir desse ponto, o impensável acontece, qualquer medíocre “abaixo da média”, pelo qual não se apostaria um centavo de real, pode, tambeḿ em articulação com essa fatia religiosa mais fanática, tomar posse nos mais altos cargos eletivos da nação.

Esse casamento é perfeito, de um lado irracionalistas negacionistas, de outro, segurando a mão do primeiro, a religiosidade mais fanática. A religião que, por sua própria essência ontológica, é reacionária. Aqui, não poderia encontrar um par mais perfeito. Essa relação é muito clara no momento político atual, legitimando o que afirmamos antes, que o Estado brasileiro não se emancipou da religião, pelo contrário, nos últimos anos se aproxima mais dela.

Acredito que está claro até aqui a relação entre bolsonarismo e religião, mas antes de finalizar, é necessário destacar outro ponto com relação ao que temos afirmado. Essa relação é uma expressão da realidade brasileira, produzida pelas nossas próprias condições materiais. Aponta ainda, quão pobre espiritualmente e culturalmente é nossa elite política. Como dizem por aí, a burguesia fede.

Por fim, ressalto também, apesar dos pesares, que não pode nos causar surpresa a configuração política atual. Deste cenário, os comunistas não podem esperar nada que não seja pior do que já está posto. Assim, parafraseando Marx, a ideologia política dominante, é a da classe dominante; a religião dominante, é a religião da classe dominante. Glória!

Falando nisso…

Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?

Gostaríamos de indicar o livro ” Marxismo, Religiosidade e Emancipação Humana”, escrito por Ivo Tonet.

Resumo: Desde que Marx [Crítica da Filosofia do Direito de Hegel] formulou a ideia de que a “religião é o ópio do povo”, muitas interpretações foram imputadas à sua obra. É esta a novidade do livro de Ivo Tonet: ele apreende o “arcabouço estrutural” marxiano para tratar da religiosidade, sem com isso ofender qualquer crença religiosa em particular ou incorrer em banalidades vulgarizantes. Há sentido na vida se não se acreditar na transcendência? Há sentido na vida sem se seguir uma determinada crença religiosa? Aqueles que não possuem qualquer tipo de religiosidade são pessoas essencialmente ruins? O que é emancipação humana? Qual a origem, a natureza e a função social da religiosidade e da emancipação humana? O que é comunismo e revolução? Estas são perguntas importantíssimas para nosso processo de autoformação revolucionária e para a compreensão da abordagem dessas temáticas pelo viés onto-metodológico e que são, com maestria, tratadas na presente obra. É muito interessante observar como o tema da religiosidade, de modo direto ou indireto, foi tratado ao longo da obra do autor e, hoje, comparece como uma articulação rica de determinações.

Edições: 2016

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