27/09/2021
O Brasil [,com o PT,] esteve à beira do socialismo (Bolsonaro, na abertura da 76ª Assembleia Geral ONU)
Se avexe não…
Amanhã pode acontecer tudo
Inclusive nada
(Accioly Neto)
O capital cria algumas armadilhas para perpetuar sua lógica. Uma delas é a ideológica. A ideologia conta com o poder da política e do direito para tentar dirimir as contradições da realidade concreta, uma vez que a lógica capitalista não permite contradições. A política, como meio ideológico, é o arcabouço predileto do capitalismo para suprimir seus muitos conflitos internos. O direito, irmão siamês da política, atua para gerir as regras criadas pelo complexo político.
Nesta esfera, o sufrágio universal é apresentado como o maior e mais eficaz meio para garantir a ordem democrática. A democracia, como perguntou Saramago no encerramento do Segundo Fórum Social Mundial de 2002, é um invento milenar, criado por “uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo?”
Antes que o escritor possa problematizar melhor a pergunta que levanta, lembremo-nos de que esse Fórum foi produzido, em sua maioria, pelos apoiadores do Partido dos Trabalhadores (PT). O evento, vale lembrar, foi realizado na cidade de Porto Alegre, em fevereiro de 2002, ainda anterior à eleição de Lula da Silva a presidente do Brasil. O PT pleiteava eleger, pelo sufrágio universal, seu representante popular ao Palácio do Planalto.
Esse partido, que se autoproclama de esquerda, planejou a fala de Saramago com a seguinte expectativa: a defesa de uma democracia burguesa que de democrática só tem o nome. O intelectual português, baseado em sua sagacidade materialista, naturalmente, desconstruiu a vontade petista, desgostando os apoiadores de Lula da Silva.
O romancista português, no desenvolvimento de suas argumentações, responde afirmativamente ao que pergunta no segundo parágrafo deste breve artigo. A contragosto da organização do fórum, acrescenta, no entanto, que o sistema de governo e de administração social que atualmente se vive não pode ser considerado efetivamente democrático.
Seguindo o arguto poeta, dizer que atualmente se vive uma democracia é uma verdade de superfície. Como verdade, serve apenas para encher a boca dos defensores políticos da democracia burguesa em sua versão abrasileirada, independente que defendam ou ataquem as instituições burguesas, a exemplo dos muitos tribunais jurídicos, em sua maioria, contrários ao povo trabalhador.
Para Saramago: “É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma minoria vier a impor sempre resultará um governo”.
Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade, adverte o escritor, que a possibilidade efetiva de ação democrática começa e acaba com o voto. “O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa.” O poeta refere-se, para que não pairem quaisquer dúvidas, ao poder econômico do grande capital. De modo particular, destaca o fato elementar dos grandes conglomerados capitalistas multinacionais usarem de diversas estratégias para manter a lógica do lucro e nem um fio dessas ações “têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira.”
Vale insistir que os tribunais jurídicos, espalhados pelo mundo capitalista, defendem, com unhas, dentes, armas e leis o grande capital, jamais as trabalhadoras e os trabalhadores.
Lula da Silva, democraticamente, comandou o Planalto por quatro anos. Reelegeu-se, sedimentado pelo voto, para mais quatro. Em seu lugar, ajudou a eleger, também via voto, sua substituta: Dilma Rousseff. Ela comandou o executivo por quatro anos e, com apoio do sufrágio e de Lula, se reelegeu para um segundo mandato de mais quatro anos. Na metade deste segundo período, sofreu Impeachment.
Para muitos o Impeachment não respeitou a democracia burguesa!
Para a ala petista e muitos de seus ventríloquos, a destituição da comandante se configura como um golpe de Estado. Para os partidários da esquerda liberal, que se gerou e se reproduziu com apoio do PT, o Impeachment não foi democrático, pois, em seu lugar assumiu o vice-presidente de Dilma, Michel Temer. Um traidor antidemocrático, como bradam os petistas e seus não poucos defensores.
Saramago, com apoio nos dizeres do povo, lamenta-se que “não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana.” Insiste o romancista na necessidade urgente de “um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência.”
Como Marx já advertia ainda no século XIX, o ápice da inteligência burguesa foi Hegel. Deste filósofo em diante, instala-se no capitalismo aquilo que Lukács chama, com apoio em Marx, de decadência ideológica burguesa.
O pensamento pós-moderno é a ressignificação mal-acabada da decadência ideológica da burguesia!
Para essa forma de pensar pela via da autoajuda filosófica, resta ao conjunto humano, e quando muito, resignar-se, ressignificar-se, ou seja, ter resiliência.
Sob o comando teórico dessa irracionalidade que toma de assalto os corredores das universidades, mesmo sob as profundas advertências de José Saramago, o voto ganha foro de patamar máximo: aparece como a única coisa a se pleitear.
No âmbito político e mais especificamente no restritivo campo do sufrágio universal, passou-se a defender o voto como o máximo a ser conquistado. Como cravou com salutar abstração um articulista que me antecedeu neste espaço: é melhor, para esse tipo de defesa, votar no menos ruim do que não votar. De tanto se eleger o “menos ruim”, o “mais pior” ganhou força, alastrou-se pelas ruas e, via sufrágio universal, subiu ao Palácio do Planalto. Para piorar ainda mais a situação, foi acompanhado de sua milícia.
Agora, diante da boca de lobo, brada-se “a volta dos que não foram”. Dito mais diretamente, solicita-se, quase como um desespero, que o “menos ruim” suba a rampa do Planalto, via sufrágio universal, para salvaguardar os riscos que o “mais pior” impõe à reprodução do capitalismo tropical.
Terminemos com o poeta, já que com suas reflexões iniciamos esta redação. Para Saramago, a democracia em sua versão burguesa-malfadada, não tem como acatar a intervenção das pessoas na vida sócio-política. Tampouco pode dar conta das complexas relações que se estabelecem entre o Estado a política, o direito e o grande capital. A própria democracia burguesa, portanto, não tem como afiançar “aquilo que afirma e aquilo que nega.”.
Se nem isso é plausível, imagine agora a possibilidade, sob o domínio da política sufragista, garantida pelo direito e pela força violenta do Estado burguês, pensar em algum ganho espiritual. Como finaliza Saramago, é impossível à política burguesa e a seus mecanismos ideológicos estatais, assegurar algum “direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos.”.
Não há, para concluir com uma expressão, como o capitalismo civilizar a vida. Isso é um mito utópico. Resta-nos, sem romantismo político-sufragista, agir para a revolução socialista. Nossa única chance de sermos realmente felizes.
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro ” Lukács: ética e política, observações acerca dos fundamentos ontológicos da ética e da política”, escrito por Sergio Lessa.
Resumo: Quando, no início da década de 1960, Georg Lukács tomou a decisão de abandonar a redação das últimas partes da sua Estética em favor de uma investigação sobre a ética, lançou-se em uma trajetória teórica que o conduziria à redação dos volumosos manuscritos que compõem sua Ontologia deixando-nos, sobre a ética propriamente dita, pouco mais do que algumas anotações dispersas e algumas passagens bastante ricas, mas pouco numerosas. A carência de material deixado pelo filósofo húngaro sobre a ética parecia indicar que qualquer estudo sistemático desta questão nos seus manuscritos póstumos não resultaria em ganhos expressivos. Esta avaliação parecia ainda mais acertada porque incorretamente avaliávamos que Lukács, na Ontologia, teria criado um vasto campo de tensões, se não de contradições, ao afirmar ser a política um complexo universal que se manteria no comunismo, enquanto complexos sociais como o Estado e o Direito seriam superados com o fim das classes sociais. Redigimos até mesmo um texto em que explorávamos o que seriam, a nosso ver, estas debilidades do último Lukács (Lessa, 2002a). Uma universalidade histórica da política a tornaria compatível com a ética: um terreno indefensável a partir dos pressupostos ontológicos mais gerais do próprio Lukács. Este texto é uma primeira tentativa de explorar tais passagens e retirar das mesmas os seus pressupostos ontológicos bem como suas conseqüências teóricas. Não fazemos, contudo, nenhuma menção expressa ao debate contemporâneo tanto porque fugiria ao escopo desta primeira tentativa de exploração do texto lukácsiano, como também porque este é o objeto de uma investigação ainda em andamento.
Edições: 2016 (2ª Ed).