Nas últimas semanas, a internet foi dominada por postagens referentes ao religioso padre Júlio Lancellotti. O sacerdote passou a ser conhecido nacionalmente já em 2021, quando circulou imagens suas quebrando pedras que impediam moradores de rua de se abrigarem sob viaduto em São Paulo.
Naquele ano, estávamos atravessando picos da pandemia de Covid 19. A ação do clérigo católico em quebrar a marretadas as pedras que impediam desvalidos de terem ao menos um viaduto para passarem a noite, impactou muitos brasileiros. Soava como heroico que alguém, sem qualquer obrigação formal, saísse de seu conforto naquele momento crítico para tentar proporcionar algum bem-estar para pessoas, como diz a sociologia, em situação de rua.
Desta vez, entretanto, não são exatamente – pelo menos não diretamente – as suas ações humanitárias que o colocaram no topo da repercussão nacional. O fato é que, a Câmara dos Deputados de São Paulo emetiu pedido para criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as Organizações não Governamentais que atuam com dependentes químicos na Cracolândia. Essas investigações, ao que pese as noticias midiática, chegariam também ao trabalho desenvolvido pelo religioso.
Diante da possibilidade de padre Júlio Lancellotti ser investigado por uma CPI, produziu-se uma enorme comoção nacional. Ressalta-se, para que fique claro o que representa o padre politicamente, para o presidente da república Lula da Sila, o religioso é um exemplo de Cristo com os pés no chão paulistano.
Logo pipocaram, por todos os lados, menções de apoio ao suposto investigado na CPI. A esquerda – e até alguns autodenominados comunistas! –, já exaltando o papel do padre junto aos pobres, desabrigados e dependentes químicos, prontamente tomou posição a favor do clérigo: alega-se que a CPI não passa de um ato político da direita – “sempre fascista” – para atacar e perseguir os pobres e quem se preocupa com eles.
O assunto escalou tanto, que em um portal de notícias a proposta de CPI foi entendida como um ataque racista. Isso pelo fato de que – segundo o autor da matéria –, muitos daqueles que se beneficiam com as ações de padre Júlio, são negros. Logo, uma CPI que investiga o religioso é naturalmente, um ato contra a população negra, portanto, uma CPI racista.
Apesar de tanta repercussão nas redes sociais, canais de Youtube, sites de notícia e podcasts, há muitos elementos importantes que estão sendo negligenciados do “debate”.
Vejamos alguns deles:
Não se pode negar que a extrema direita, ideologicamente, tende a manter uma postura contrária a qualquer esforço de distribuição de renda. Políticas de inclusão no mercado capitalista e, em geral, assistencialismo voltado para os mais miseráveis, são atacados impiedosamente pela direita reacionária. Por trás disso está a ideia da livre concorrência, de que todos têm as mesmas vinte quatro horas, entre outras ideias econômicas mais sofisticadas que chegam à medíocre elite brasileira de forma muito rasteira.
Seja na elite econômica ou em estratos da classe média, e independente do nível de consciência teórica sobre esses ideais, eles atuam na manutenção do capitalismo. Com base nisso, poder-se-ia considerar que a proposta de uma CPI que, de alguma maneira, ataque organizações que prestam assistencialismo aos mais desvalidos, tem um caráter político-ideológico alinhado com os interesses da burguesia. Ainda que, obviamente, existam aí muitas mediações.
Abaixo disso, em um nível ainda mais rasteiro, essa ideologia pró capitalismo se manifesta nas rinhas do partidarismo brasileiro, na disputa por prefeituras, por vagas no legislativo, por posto na escada da universidade e em diversos outros espaços.
A questão aqui é que, ao se contraporem aos partidos e grupos políticos da direita e extrema direita nessa situação, a esquerda, de modo geral, incluindo os comunistas – não todos, com certeza – tomam posição em favor do Estado. Rejeita-se a política da direita para louvar a política da esquerda. Isso é o que se chama aqui de ringue da politiqueira. Com um pugilato como esse, o avanço para uma sociedade emancipada das amarras do capitalismo, é zero; senão negativo!
O trabalho de padre Júlio, entretanto, tem um caráter humanitário elevado aos olhos de muitas pessoas. O religioso combate as construções hostis que impedem moradores de rua de se abrigarem sob marquises, viadutos, além de levar alimento para quem tem fome. Como poderíamos não ser contra uma CPI, um movimento político-partidário que ataca um trabalho dessa natureza? A resposta mais imediata é: não. Mas isso não é tudo.
Parafraseando Marx e Engels, fome é fome, mas a fome saciada com um prato de nome bonito em um restaurante é diferente da fome saciada com restos podres em um lixão.
Desse modo, temos uma questão prática, que não deixa ser também teórica. É fato que quem tem fome precisa se alimentar. Comer agora, não amanhã, não depois da revolução comunista. Para quem tem fome, receber um prato de comida ou um copo de caldo faz toda diferença. Igualmente, para quem não tem onde se abrigar e encontra alguém que tira as pedras debaixo do viaduto, para proporcionar ao desabrigado ao menos um local para passar uma chuva, é de fundamental importância para a sobrevivência de quem precisa desse tipo de abrigo.
Mas toda essa importância, toda essa diferença positiva proporcionada pelas ações do religioso ou de quem quer que seja, não passam da esfera individual. Não deixam de ser soluções, mas são soluções limitadas ao indivíduo. Quando muito essas ações se articulam com, ou, se transformam em ações de política pública (algumas viram CPI), como as cozinhas solidárias do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Permanecem, portanto, nos limites do Estado burguês, seja ele administrado pela direita, pela esquerda, ou por algum de seus muitos estratos.
Há um outro importante detalhe nas ações do padre Júlio Lancellotti. Elas têm uma dimensão religiosa. Especialmente da caridade religiosa. Isso é inegável! O cristianismo tem tradição nessa área. Aqui mora a ideia de que as boas ações agradam ao Deus cristão. Por muitos séculos a Igreja Católica Apostólica Romana foi uma grande instituição caridosa, o que não a impediu de, ao mesmo tempo, orquestrar diversos genocídios, espoliações e sacrifícios de defensores da razão como Giordano Bruno, Joana D’arc, Frei Tito, dentre inúmeras outras lamentáveis ações. A história serve de prova!
Padre Júlio, conforme recomenda as escrituras sagradas, “parece” comprimir bem seu ofício de cristão; haja vista que, conforme escreve o livro de Timóteo 19:17, aquele que faz caridade ao pobre, empresta a Deus.
Curiosamente, na mesma fonte, em Mateus 6:2, lê-se: “quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas”. Claro que nos dias de hoje, com câmeras conectadas com a internet em todos os lugares em tempo real, não podemos simplesmente acusar o padre de estar agindo como os “hipócritas”.
Vale ressaltar que toda a caridade cristã, lamentavelmente, não impediu o apoio da Santa Sé à escravidão, em que não importava a cor da pele, senão o lucro. Até que esse modelo de produção da riqueza material baseado no trabalho escravo entrasse definitivamente em falência, a igreja que se diz Santa, defendia a escravidão como motor da história.
Importante não esquecer que, por detrás da caridade religiosa, há sempre, por mais tênue que seja, a expectativa de que os problemas reais serão resolvidos por um demiurgo: o Deus católico.
Para além das ambiguidades da Bíblia, não se pode perder de vista que a caridade religiosa não rompe, em momento nenhum, com os limites do Estado capitalista burguês. As ações do padre Júlio, não obstante sua boa intenção e seu caráter que aqui vamos julgar como positivo, não se estendem além da gratificação individual, dos limites burgueses.
Se pensarmos bem, apesar de individualmente – repito – relevante, distribuir comida nas ruas de São Paulo não contribui em nada com a organização da classe trabalhadora em prol da revolução comunista. Por mais que pareça heroico o ato de denunciar construções hostis aos moradores de rua, o que se logra com isso é que pessoas durmam numa calçada. Ainda que quebrar pedras que impedem que desabrigados se protejam da chuva sob um viaduto, pareça algo muito elevado, o que se consegue com isso é que seres humanos tenham como teto um viaduto, uma ponte: isso é lastimável!
E é claro que a revolução não é o objetivo de padre Júlio. Mas a questão aqui é o apoio acrítico da esquerda em geral a estas ações, muitas vezes se atendo ao nível mais imediato do problema. Agir assim é jogar, com todas as suas regras, o jogo do capitalismo. Consequentemente, perde-se a articulação com algo que deve ser o propósito maior de qualquer um que se julgue comunista.
Quando se tem como referência a superação do modo de produção capitalista, a revolução comunista, aquelas ações que parecem relevantes precisam ser analisadas com mais rigor. Os comunistas, portanto, que nos últimos dias têm se declarado em favor da caridade religiosa do padre Júlio Lancellotti, não podem abrir mão dessa reflexão: as ações do religioso estão circunscritas aos limites do capitalismo, defendê-las sem reflexão crítica é, em grande medida, defender esses mesmos limites.
A caridade religiosa não só é limitada às regras do Estado burguês, como, em sua maioria, corrobora com os interesses capitalistas. Em certa medida, as boas ações da igreja reforçam a ideia de que o capitalismo tem solução, basta que sejamos mais caridosos, basta que os ricos deem mais esmolas aos pobres e tudo ficará bem.
A caridade religiosa inspira políticas públicas que, por sua natureza, são mais um meio para, em geral, afirmar que o capitalismo tem jeito. A caridade religiosa está de mãos dadas com o capitalismo. Aquela só avança até os limites deste.
De modo geral, apoiar a caridade religiosa sem ter no horizonte a revolução comunista, é contribuir com a manutenção da democracia burguesa, com a exploração do humano pelo humano, com o próprio capitalismo.