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O horror dos nossos dias

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Um banheiro para cada 850 pessoas. Um chuveiro para cada 3.500 seres humanos. Água e comida são artigos de luxo, como um sapato Prada em Nova Iorque ou um carro Porsche em Berlim. Cerca de 8.500 crianças e jovens se tornaram órfãos nas últimas semanas. 14.000 já morreram.

Contam-se em dezenas de milhares os mortos, em maior número são os feridos com sequelas para o resto de suas vidas. Noite bem dormida ou dia de descanso se tornaram lembranças distantes, como se fossem passadas décadas desde o último bom sono ou última gargalhada divertida. A emoção trazida por uma canção, um poema ou um pôr do sol se tornou tão afastada do cotidiano que mais parece um anseio irrealizável: uma utopia, um desejo que não tem lugar no mundo – ou algo do qual nem mais se recorda.

Como não se embrutecer depois de mirar tantas e tantas feições de dor, pavor, fome e sofrimento em tantas e tantas crianças? Ao ter de continuar vivendo sob o choro de fome, medo e susto de tantos e tantos bebês, do pranto de tantas e tantas mães que perderam os seus filhos e filhas? De tantos e tantos pais que não mais abraçarão seus pequenos e suas pequenas, que não mais sentirão o calor de seus abraços e a doce umidade de seus lábios em suas faces? Como a nossa humanidade pessoal, a minha e a sua, pode sobreviver ante tantos amores enterrados sob escombros e tantas saudades plantadas para sempre nas almas dos que, apesar de tudo, sobreviverem? Foto no The Guardian: a mãe cobre com seu corpo a filha, o soldado prepara sua arma… o que pode esta criança? Esta mãe? Reza para que as balas matem a ambas? Consola-se como poder-se-ia consolar: ao menos morreriam abraçadas?

Que direito tem um ser humano de matar o amor de um pai pela filha, de uma companheira ao seu companheiro – de um humano a outro? Que poder é este que converte o humano em um especialista em trucidar carne humana? Tal como se fosse carne de uma besta-fera, como se esta carne não fosse portadora da grandeza de um quadro de Rembrandt, da beleza de uma sinfonia de Beethoven, da imensa capacidade de ser feliz, rir sem limites e amar até que as almas se fundem em um infinito cosmos de prazer, alegria, completude, felicidade e harmonia? Que humanidade é esta que pode assistir a horrores desta monta – ou de qualquer outra – sem se indignar, sem ter o sangue explodindo pela urgência de acabar com esta perversidade?

Como podemos nós, eu e você que lê estas linhas, dormir, comer, amar, sonhar… sabendo o que sabemos, assistindo ao que assistimos… somos nós cúmplices, acomodados e conformados, dos algozes e dos monstros que tanto horror perpetram e tantos amores destroem?!

Não duvide: somos o que somos, fazemos o que fazemos, porque deixamos de ser guardiões da humanidade, do que de mais sublime e generoso até agora – tanto quanto sabemos – surgiu no universo, para nos convertermos em guardiões do dinheiro, do lucro – do capital. Esta sanha é o feitiço do capitalismo, criado por nós e que nos torna vampiros de humanos: mortos-vivos que vagamos pelo planeta a sugar onde, como e quando possível, todo e qualquer lucro. Há 1.400.000 pessoas em Rafah. Destas, 600.000 são crianças! Matamos, reduzimos a existência das pessoas à resquícios de humanos, convertemos nossos semelhantes em locomotivas, força de trabalho para gerar lucros que nem sequer mais podem ser empregados para a felicidade de ninguém, de tão monstruosamente imensos.

Destruímos tudo o que vemos: o céu se torna opaco, o mar não mais acolhe a vida, a terra não mais alimenta a planta e o planeta vai ser tornando inóspito a todos nós. Matamos a nós próprios, pelas próprias mãos, jogando bombas ou comprando o leite dos nossos filhos na padaria da esquina. Embrutecemo-nos para podermos continuar a viver nossas vidas como se, neste instante em que estás a ler estas linhas, crianças não chorem o pai assassinado, mães não padeçam o horror dos horrores: abraçar o cadáver de seu pequeno ou sua pequena.

Vivemos como se o mundo não pudesse ser humanamente humano com tanta abundância sendo produzida e com tanta história que já foi acumulada em nosso presente. Quem poderia imaginar que o presente seria tão absurdo?!

Basta de matar humanos, basta da “morte” que se “morre de velhice antes dos trinta”, “de emboscada antes dos vinte” e “de fome um pouco por dia”. Há comida para todos, moradia sobrando e montes de felicidade nos esperando! Nada menos do que uma revolução, é o que carecemos!

Malditos! Que tremam os poderosos: ainda há humanos no planeta!

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