02/10/2020
Há quase sete meses vivenciamos uma mudança nas nossas rotinas. Das relações familiares e afetivas as relações de trabalho, tudo modificou-se severamente. Assistimos atônitos o Brasil chegar a marca dos 100 mil mortos pela Covid-19, hoje já ultrapassando os 140 mil, num cenário de mais de 4 milhões de casos.
O primeiro caso de contaminação pela covid-19 no Brasil, foi confirmado em 26 de fevereiro, um senhor de 61 anos de idade que havia chegado da Itália, porém a vítima fatal foi uma senhora de 57 anos, ambos em São Paulo, a diferença é que a senhora não havia chegado de viagem da Itália, era empregada doméstica tendo sido contaminada pelos patrões.
A pandemia causada pelo novo coronavírus, também chamada de crise sanitária, encontrou um solo fértil: a crise do capital. Emergindo nos anos 1970, a crise do capital ao atingir intensamente a economia das principais potências mundiais, proporcionou também a desestruturação de vários países periféricos, tornando-os mais dependentes dos país capitalistas avançados. Como resposta, entrou em curso uma reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, o que acarretaria, portanto, implicações para os trabalhadores.
As implicações para a classe trabalhadora foram e são inúmeras, marcadas pelo processo de flexibilização da produção e das relações de trabalho, das quais o desemprego estrutural, a intensificação da exploração da força de trabalho e a ampliação da pobreza são os exemplos mais degradantes.
A ocorrência de uma pandemia num contexto já marcado pela crise do capital e sua nítida incapacidade civilizatória, escancarou as vísceras da sociedade capitalista (talvez já expostas há tempos…).
O “normal” parece que não estava “tão normal” assim…
Em 2019, a ONU já registrava uma cifra de 736 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza em todo o mundo, e 1,3 milhões vivendo no que denominam de pobreza multidimensional (ocasionada por várias carências como acesso à educação, a saúde e a qualidade de vida). Com a pandemia, estima-se que mais de 250 milhões de pessoas tenham sido colocadas sob o risco de fome, isso sem falar de todos as outras condições de vulnerabilidades e riscos sociais a que estão submetidas cotidianamente. Para o Brasil, o cenário também é preocupante, pois a ONU sinaliza que até o final de 2020 a taxa de extrema pobreza em 9,5%, um aumento de 4,5% se comparado a 2019.
Quanto ao desemprego, o Brasil alcançou em 2018 um percentual de 12,3%, e em 2019 marcou 11,9%. A acentuação da desigualdade social, da pobreza, da miséria e do desemprego já caricaturavam um cenário que a nosso ver, de normal não tinha nada. Em 2020, a “crise” proporcionada pela pandemia levou a uma alta de 27,6% na taxa de desempregados, segundo pesquisa realizada pelo IBGE e divulgada este mês. A pesquisa aponta que o Brasil fechou agosto com 12,9 milhões de desempregados, uma média de 2,9 milhões de desempregados a mais que no mesmo período do ano passado.
De fato, a pandemia mudou nossas rotinas. O isolamento social como medida de proteção nos distanciou dos nossos familiares e amigos. A suspensão das aulas levou várias escolas públicas e privadas a implantarem o ensino remoto, demonstrando e acentuando a desigualdade do acesso à educação e aos meios necessários para obtê-la com qualidade. Acentuou também a precarização da formação e do trabalho docente, ao tornar professor em blogueiro, youtuber, um verdadeiro malabaristas para “prender” a atenção de crianças, adolescentes e jovens frente a uma tela de computador.
As relações de trabalho também mudaram…
O trabalho remoto (ou à distância) e o home office nos distanciou da empresa e dos colegas de trabalho, apenas fisicamente. As videoconferências não param, as mensagens no grupo de whatsapp ou telegram não têm dia e nem horário. As metas se ampliaram e com ela o medo do desemprego. Em entrevista realizada em julho deste ano ao programa Impressões da TV Brasil, a ministra do Superior Tribunal do Trabalho –TST, Maria Cristina Peduzz anunciou “o trabalho remoto veio para ficar”. Dados apontam que 43% das empresas privadas adotaram o trabalho remoto e que 60% dos funcionários estão trabalhando em casa, segundo pesquisa realizada pela Betania Tanure Associados (BTA). O próprio TST sinaliza as “vantagens” para o empregador com a redução dos custos além da otimização do tempo de trabalho para o empregado.
Certamente estamos diante da possibilidade de mais ampliação da precarização das condições de trabalho, pois as empresas privadas e não diferentemente o governo, já identificaram a capacidade de economia que esse tipo de trabalho proporciona, além claro, de uma possível maior produtividade pois o tempo a ser dedicado as demandas do trabalho e o tempo a ser dedicado as demandas da família e da casa se misturam, perdendo o trabalhador a noção do tempo de trabalho voltado as demandas da empresa.
Mas não foi apenas a nossa relação de trabalho com a empresa que mudou. Não podemos nos furtar aqui de pontuar a realidade de milhares de mulheres que nesse período do isolamento viram as demandas das tarefas domésticas, os cuidados com os (as) filhos (as) e com os (as) idosos (as) triplicarem e além disso somar-se, para algumas, com o trabalho remoto, evidenciando o elevado nível de precarização e invisibilidade do trabalho doméstico, que remetem a sobrecargas físicas e emocionais.
Ainda longe da efetiva possibilidade de cura para o novo coronavírus, o dito “novo normal” foi oportuno para o capitalismo, à medida que proporcionou a implantação de meios de ampliação da exploração dos trabalhadores e trabalhadoras, criando estratégias capazes de assegurar-lhe a preservação da obtenção do lucro.
Bem… o propagado discurso do “novo normal” ocorre numa realidade mundial de mais de 33 milhões de casos de Covid-19 e 1 milhão de pessoas mortas. Um verdadeiro cenário de guerra cujo o inimigo não é apenas o novo coronavírus. Tratar o atual contexto como um “novo normal” parece-nos uma tentativa de reduzir o momento que estamos vivendo a uma questão apenas de mudanças de comportamentos, e consequentemente a capacidade de adequação a essa “nova normalidade”.
Nos parece que estamos diante de alguns desafios que vão desde sobreviver a uma pandemia numa proporção nunca vista pela maioria de nós, e paralelamente a isso, criar meios de resistência, e por que não dizer sobrevivência, as novas artimanhas de uma pandemia que há tempos nos mata: a pandemia do capital.
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro ” Violência e Capitalismo”, escrito por Maricelly Costa.
Resumo: O livro Violência e Capitalismo apresenta uma análise das bases materiais da violência na sociedade capitalista. Com uma investigação que parte da acumulação primitiva, seguindo com uma análise sobre as formas de violência existentes no processo de desenvolvimento e consolidação do capital até a fase dos monopólios, o texto demonstra como a violência é um instrumento necessário e intrínseco a lógica de reprodução do capital, que na forma de violência econômica e extra econômica dilacera o trabalhador na sua condição física e mental para atender as necessidades do capital, e como isso se potencializa no contexto da crise estrutural do capital quando o esgotamento do binôminio taylorismo-fordismo implica numa reestruturação produtiva baseada numa flexibilização da produção, que consequentemente impulsiona uma nova gestão do processo de trabalho, marcada pela violência da intensificação da exploração da força de trabalho, cuja captura da subjetividade apresenta-se como uma de suas formas.
Este livro é uma contribuição para o debate e as reflexões sobre o fenômeno da violência existentes no interior das Ciências Sociais e do Serviço Social, ao apresentar uma apreensão da essência desse fenômeno como uma potência econômica presente na sociabilidade capitalista.
Edições: 2018, impressa