17/10/2020
Entra eleição, sai eleição, a conversa é sempre a mesma: precisamos apoiar o menos pior, porque senão vence o “mais pior”. O problema desta tática, aparentemente tão sensata, são suas consequências estratégicas. Ao lutarmos pelo menos pior, vamos de menos pior a menos pior, até chegarmos ao “mais pior”. Ao não lutarmos pelo melhor, apenas provemos o pior. Isso pode parecer só jogo de palavras, mas não é não. Senão, vejamos.
Nas eleições de 1989, contra Collor, a esquerda eleitoreira apoiou Lula; em 1994, contra FHC apoiou-se Lula; em 1998, contra novamente FHC, apoio a Lula e, finalmente, em 2002, contra José Serra, o eterno apoio a Lula. Todos podíamos ver a trajetória para a direita do PT, as conversas com a burguesia, as negociações… e a Carta aos Brasileiros de 2001. Ainda assim, Lula era o “menos pior”. Eleito Lula em 2002, não poucos partidos eleitoreiros, como o PCB, o PCO, PC do B, o PSOL e o PSTU avaliaram que um governo de esquerda ao menos com algum conteúdo popular chegara ao poder e que a tarefa agora seria fazer o apoio crítico ao governo, de tal modo e empurrá-lo à esquerda e ao mesmo tempo defendê-lo da ameaça da direita. A estratégia do “menos pior” não permite que se enxergue a verdade ante o nariz: era um governo do capital contra os trabalhadores, a vitória de Lula era uma derrota do proletariado.
O “apoio crítico” deu no que deu! Distribuição de renda? Todos os dados confirmam que sob o petismo tivemos uma ainda maior concentração da renda: 6 indivíduos possuem a riqueza equivalente a 150 milhões de pessoas! Defesa dos direitos dos trabalhadores? Reforma da previdência, integração dos sindicatos ao Estado em um grau inédito, cooptação do movimento popular e de suas principais lideranças (de Stedile a Boulos), retirada de direitos e… concentração de renda: que defesa dos trabalhadores pode ser essa? Combate ao machismo e ao conservadorismo? Em que momento o direito ao aborto foi de fato revogado em nosso país? Olhem a história: antes do petismo, ainda se podiam fazer abortos clandestinos, hoje está praticamente impossível! Combate ao conservadorismo? Quando os fundamentalistas tiveram maior influência sobre a educação pública do que sob os petistas? Quando a direita mais cresceu? Quando, antes, os evangélicos tiveram a banca no Congresso que conquistaram sob e em aliança com o PT?
Reforma agrária? Com Lula elogiando o agrobusiness como salvador da pátria? Com a morte de militantes da luta no campo em uma intensidade maior do que no período FHC? Com verbas e mais verbas sendo generosamente destinadas aos latifundiários e à conversão do MST em mero órgão estatal informal de distribuição de bolsa alimentação? Defesa do SUS? Quando a saúde foi de fato privatizada até o fim? Defesa da educação pública? Quando as universidades e escolas públicas conheceram uma expansão que apenas visa sua degradação para possibilitar uma maior lucratividade da educação privada? Quando os grandes grupos capitalistas internacionais entraram para valer no nosso sistema educacional? Quando as universidades privadas receberam mais recursos públicos que sob o petismo? Se não foi sob Lula e Dilma, moramos em países distintos!
Independência do país do grande capital internacional? Seria para rir, se não fosse uma tragédia para milhões de brasileiros! Não foi Lula quem trouxe Meirelles, então funcionário do Banco de Boston, para dirigir o Banco Central? Não foi o PT que… transferiu parte do “caixa” do país para o FMI, como se não houvesse nada melhor para fazer com esse dinheiro nesse país de biliardários e miseráveis? A lista poderia continuar indefinidamente. Não é possível encerrar sem mencionar ao menos isto: “ética” na política? Só se por ética entendemos a defesa dos interesses mais mesquinhos do estamento burocrático-político e de uma parcela do grande capital, ou seja, um enorme esquema de saque dos recursos públicos que alguns calculam como tendo alcançado a ordem de 600 milhões de reais por dia!
A diferença fundamental entre Lula e FHC? A evolução da crise mundial e as circunstâncias particulares dos anos em que cada um esteve no poder. De fato, os petistas foram a continuação linear e direta do neoliberalismo do PSDB. Como também foram a continuidade da proteção do núcleo mais conservador da repressão (se é que há um mais progressista) oriundo da Ditadura Militar. Não fosse a proteção que os governos do PSDB e do PT deram aos militares e aos órgãos de repressão; houvessem sido essas forças das masmorras levadas à justiça burguesa, é muito provável que Bolsonaro não tivesse sobrevivido. Assim, quando chegou a crise do neoliberalismo, o apoio eleitoreiro ao menos pior deixou Bolsonaro e os seus como a única alternativa para as massas justificadamente revoltadas contra o establishment político e burocrático encastoado no Estado. Por escolher sempre o menos pior, fomos de “menos pior” ao “mais pior”.
Há uma “lei geral”, por trás desta evolução.
Uma “lei geral” da política
Como diziam Marx e Engels, a classe social que pode o mais, não pode o menos.
A burguesia, para pegar um exemplo, podia fazer a Revolução Francesa e, naquele movimento, guilhotinar a família real e transitar para a França capitalista. Mas ela não poderia, embora tenha tentado por toda uma década antes de 1789, reformar o velho Estado absolutista e o converter, deste modo pacífico, ao Estado burguês. O proletariado conhece a mesma situação: ele pode liderar uma revolução que destrua o Estado, a família monogâmica, a propriedade privada e as classes sociais (portanto, que destrua o capital), mas não pode “por meio do Estado” (Marx, A questão judaica), reformar a ordem do capital para convertê-la em uma sociedade mais justa ou mais equitativa.
A estratégia de se tomar o Estado para, a partir dele, combater o capital através de reformas parciais, derrotou-se a si mesma: não há lição mais evidente do século 20. Desde os bolcheviques, que a partir da NEP em 1921 avaliaram que construiriam o socialismo na Rússia pelo domínio político do Estado sobre a economia, desde a longa, de várias décadas, experiência da socialdemocracia na Europa, na qual os partidos socialistas ou o partido trabalhista inglês, com seus sindicatos e centrais sindicais, ocuparam os altos postos de comando do Estado, até todas as experiências reformistas nos países periféricos do sistema do capital – todas as experiências resultaram em uma demonstração prática e inequívoca: o capital controla o Estado, este nada mais é que o capital elevado a poder político. Ocupar os altos postos de comando do Estado apenas significa se colocar a serviço do capital, nada mais, nada menos. Independente da coloração ideológica (alguém tem dúvidas da intenção revolucionária de um Lenin, Trotsky ou Kollontai?), do partido ou da teoria que tenha por trás de (de Bernstein e Kautsky a um Guidens), o resultado é sempre o menos: se o proletariado não pode fazer a revolução, muito menos pode reformisticamente chegar ao socialismo.
Na política, quem pode o mais, não pode o menos.
Não se trata, agora, de discutir os fundamentos ontológicos desta situação histórica mais geral. Basta assinalar que isto é assim porque a extração da mais-valia se faz pelo trabalho proletário e, sem superá-lo pelo trabalho associado, não há qualquer evolução possível em direção ao socialismo. E o trabalho proletário não pode ser reformado. Um trabalho proletário reformado continua sendo um trabalho proletário. A mais-valia continua sendo produzida, o capital continua dominando a reprodução social e, portanto, também os complexos ideológicos etc. etc. A lei geral, acima, pode também ser assim escrita: o proletariado não pode reformar o trabalho proletário, pode apenas superá-lo pelo trabalho associado.
O uso do cachimbo faz a boca torta!
Em O 18 Brumário, Marx denominou de “cretinismo parlamentar” a incapacidade dos setores da pequena burguesia para enxergar a realidade à sua frente e tirar conclusões pertinentes à situação concreta. Naquela conjuntura, os partidos pequenos burgueses se voltaram contra as massas populares revoltadas nas ruas e se dispuseram à uma luta sem tréguas no parlamento onde, acreditava-se, tudo se decidiria. Sem a força das ruas, estes mesmos partidos foram facilmente derrotadas no parlamento e, então, decidiram recorrer às ruas. Quanto tinham força, se voltaram contra ela. Quando perderam no parlamento, descobriram que nas ruas é que se decidem as coisas. Foram as ruas para serem facilmente dispersados por Luís Bonaparte. O mais puro “cretinismo parlamentar”.
Hoje as forças eleitoreiras que propõem a necessidade de uma frente democrática contra Bolsonaro, a “besta fera fascista”, não vão além de uma nova versão do “cretinismo parlamentar”. Que Bolsonaro é reacionário, não há dúvidas. FHC é tão reacionário quanto Bolsonaro, apenas é de um reacionarismo mais refinado, educado, “mais ao gosto das camadas esclarecidas da população”. Que Lula é reacionário, se há ainda dúvidas, examine-se o arco de alianças dos governos petistas e a estratégia econômica dos mesmos.
Basta relembrar que, quando da eleição de FHC, um forte movimento pela desmontagem do aparato repressivo sobrevivente da Ditadura tomou corpo. A resposta de FHC foi comprar a conivência dos perseguidos e torturados pagando indenizações aos mesmos em troca de abrirem mão de continuarem a lutar pela punição dos seus algozes. Os petistas? Não apenas aprofundaram e ampliaram esta política promotora de conivência com os torturadores, como ainda a ampliaram. Nunca se pagou tanto, nunca se pagou a tantos, para que abrissem mão do seu direito de lutar contra os crimes de lesa-humanidade perpetrados contra eles, não raras vezes contra seus próprios corpos (lembram do papel vergonhoso do Genoino?).
Mas os petistas foram além, pois a “governabilidade” assim o exigia. Dilma, que tanta coragem demonstrou sob tortura, se acovardou como presidenta e não levou a juízo nem sequer a Ulstra, que pessoalmente a torturou. Castrada pela a faixa presidencial, terminou promovendo a legislação repressiva mais dura que este país conhecera desde o AI-5.
Não fosse a proteção ativa dos governos peessedebistas e petistas aos torturadores, censores, espiões etc. da Ditadura Militar, Bolsonaro, Mourão, Heleno e todos os outros que estão hoje em Brasília não teriam permanecido no seio do Estado, com o poder que hoje possuem.
Qual o resultado da estratégia de se apoiar o “menos pior”, justamente porque é o “menos pior”? Do PSDB ao PT e, deste, a Bolsonaro!
Hoje o “cretinismo parlamentar” não faz mais do que propor a nós que, para lutar contra Bolsonaro e os seus, devemos nos aliar com os petistas, pcbistas, pcdobistas, psdebistas, psolistas – ou seja, o mesmo arco de aliança que promoveu ativamente a manutenção do aparelho repressivo oriundo da Ditadura Militar. Isso é o máximo que a estratégia eleitoreira hoje nos pode oferecer!
Se queremos lutar com consequência contra a direita, precisamos é lutar por uma alternativa real, que não seja a manutenção do Estado burguês, com todas as forças reacionárias que nele se abrigam e que ele apoia. Conquistar o Estado, ocupar os altos postos de comando do Estado, nada mais significa que se colocar a serviço do que de mais reacionário há em nosso país.
A estratégia da “luta de posição” e de se constituir uma “contra-hegemonia” através da ocupação de postos no aparelho estatal tem apenas uma consequência: inserir a ideologia burguesa no seio das forças que se pretendem revolucionárias e a consequente conversão destas em forças burguesas.
O que fazer?
Nunca tivemos um desencanto da população em geral tão grande e tão enorme para com o Estado e para com o estamento político-burocrático. É aí que precisamos centrar a nossa luta. Demonstrar, argumentar, explicar, elucidar, ensinar, esclarecer, explanar, expor até os limites de nossas capacidades que a nossa única alternativa é destruir o Estado e transitar para o trabalho associado. Explorar o desencanto e desconfiança da população para com o estamento-político burocrático em particular e para com o Estado em geral, explorar descrenças, como a para com o complexo médico-hospitalar (por exemplo, na desconfiança com as vacinas ou com a ciência), para mostrar como a alternativa não é Bolsonaro, mas a revolução contra o capital.
Defender o Estado “democrático” contra Bolsonaro “fascista” é o mesmo que defender o Estado que sempre defendeu Bolsonaro. Se aliar às forças que sempre foram ativas na proteção de Bolsonaro e os seus é o mesmo que se aliar às forças que sempre se colocaram ao lado de Bolsonaro todas as vezes que houve a oportunidade de desarticular as forças da direita.
Mais uma vez: é uma estratégia que derrota a si mesmo. Pois aquele que não identifica seu inimigo, já perdeu antes mesmo de a luta começar.
Quando as barricadas não estão na ordem do dia, a luta ideológica ocupa o lugar central. Aqui é onde reside nossas potencialidades e nossas possibilidades de acumulação de forças. A história está a nos dar razão a uma velocidade inédita. Precisamos tirar vantagem deste fato. Apoiar o “menos pior” Boulos para, no segundo turno, apoiar o “menos pior do menos pior”?
De novo?
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro ” Violência e Capitalismo”, escrito por Maricelly Costa.
Resumo: O livro Violência e Capitalismo apresenta uma análise das bases materiais da violência na sociedade capitalista. Com uma investigação que parte da acumulação primitiva, seguindo com uma análise sobre as formas de violência existentes no processo de desenvolvimento e consolidação do capital até a fase dos monopólios, o texto demonstra como a violência é um instrumento necessário e intrínseco a lógica de reprodução do capital, que na forma de violência econômica e extra econômica dilacera o trabalhador na sua condição física e mental para atender as necessidades do capital, e como isso se potencializa no contexto da crise estrutural do capital quando o esgotamento do binôminio taylorismo-fordismo implica numa reestruturação produtiva baseada numa flexibilização da produção, que consequentemente impulsiona uma nova gestão do processo de trabalho, marcada pela violência da intensificação da exploração da força de trabalho, cuja captura da subjetividade apresenta-se como uma de suas formas.
Este livro é uma contribuição para o debate e as reflexões sobre o fenômeno da violência existentes no interior das Ciências Sociais e do Serviço Social, ao apresentar uma apreensão da essência desse fenômeno como uma potência econômica presente na sociabilidade capitalista.
Edição: 2018, impressa