NL04 – Bolsonaro: a racionalidade da insanidade

03/06/2020

Estamos assistindo a mudanças significativas no Brasil. A qualidade destas mudanças não é ainda inteiramente clara, mas há vários indícios de que, se o processo de impeachment de Bolsonaro está ao menos momentaneamente paralisado, a organização de um “auto-golpe” está em pleno andamento. Hoje, suas possibilidades de sucesso são pequenas, contudo são bem maiores que há uma ou duas semanas atrás.

São conhecidas as manifestações de Bolsonaro, da “família imperial” e dos bolsonaristas a favor de uma ditadura. Não há necessidade em repassá-las aqui. Quatro fatos, contudo, merecem ser salientados.

O primeiro é a afirmação de Dias Toffoli, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, de que não é a democracia que está em questão, mas a “democracia representativa” (o que seria uma democracia não representativa? Não era assim que alguns partidários da Ditadura Militar definiam o regime?). O segundo fato é a subida de tom de Bolsonaro. Na reunião ministerial do dia 22 de abril, véspera da queda de Moro, Bolsonaro postulou que “o barco está afundando”, que não vai permitir que as investigações que comprometem a ele e seus filhos prossigam. Na mesma reunião são acolhidas as teses de que a pandemia é uma estratégia chinesa para dominar o mundo, de que a cloroquina é “o” remédio e de que o Supremo não passa de um bando de salafrários. Cai Ministro, cai ministro, cai ministro… cai Regina Duarte!!… Bolsonaro ataca os governadores e conclama os empresários a atacarem Dória (seu mais sério adversário em 2024).

O terceiro fato é Fernando Henrique Cardoso anunciando o perigo de os militares no governo gostarem do poder e, dias depois, o General Mourão em longo artigo no Estadão apoia Bolsonaro – que já havia declarado “o Exército está conosco”. As razões da crise, segundo Mourão, estariam no desrespeito à autoridade (pelo Supremo, pelo Congresso, pela imprensa, pelas “personalidades”) ao Presidente eleito. A insanidade de Bolsonaro não é problema… e, de fato, talvez não seja mesmo, como argumentaremos.

O quarto fato é o clamoroso silêncio do grande capital: a Folha e o Estadão, dia sim dia não, solicitam que o “PIB nacional” entre na luta contra Bolsonaro. A resposta veio em um longo artigo de Roberto Macedo (A pandemia e a saúde da economia) no Estadão de 21 de maio defendendo uma posição muito próxima a Bolsonaro, qual seja, a abertura da economia apesar do coronavírus. A estratégia proposta parece ser a de preservar os melhores leitos nos melhores hospitais para as classes dominantes, para as quais vale também a política de isolamento. Para os trabalhadores (Bolsonaro: “lamentamos”), abertura da economia e que morram quantos tiverem que morrer.

Enquanto houver democracia representativa, nem a “mão de Deus” será capaz de ajeitar o país, parece ser uma boa súmula do que estamos assistindo. Nossos ditadores – e também Pinochet! – não se diziam democratas? É “guerra”, Bolsonaro avisa. Os militares no governo se alinham a ele. O grande capital se cala. Os trabalhadores não se mexem. O “autogolpe” de Mourão está no ar…


Nero e Bolsonaro

Por vezes personalidades fronteiriças com a loucura se mostraram as mais adequadas. Nero, na antiga Roma, é o caso mais conhecido. Bolsonaro pode vir a se tornar mais um exemplo clássico.

O Presidente está convencido de que, pelas mãos de Deus, colocará o país “nos trilhos”. Ainda pelas mãos de Deus, serão esquecidos tanto suas ligações com as milícias, os investimentos de seus filhos em prédios clandestinos construídos em áreas controladas pelas milícias, a evolução do seu patrimônio pessoal, sua proximidade de vizinho com Ricardo Lessa que tinha mais de uma centena de fuzis na residência e está envolvido no assassinado da Marielle. Também espera que será esquecido do “toma-lá-dá-cá” com o que há de mais corrupto no Centrão.

A insanidade de Bolsonaro está custando e irá custar milhares de vidas. Economicamente, para não falar da saúde pública, teremos um desastre. Tomemos como exemplos Toledo, no Paraná (frigoríficos), a Baixada Santista (polo petroquímico), Toritama, em Pernambuco (confecções). Basta o vírus chegar para paralisar estes centros produtivos. Quando as mortes começarem a se acumular, quantas famílias buscarão refúgio em lugares menos infectados, levando para lá o vírus? Quem será louco de ir trabalhar quando os colegas caírem doentes e morrerem sem assistência médica? Quantos terão que ser substituídos por trabalhadores que ainda precisarão serem treinados? Quantas linhas de produção ficarão sem seus insumos básicos? O estrago nas plataformas da Petrobrás é bom indicativo. Quantas delas já estão paralisadas? Se não fosse a queda da demanda, o impacto econômico seria ainda mais grave.

Ao invés de centros de apoio, da assistência financeira direta e imediata, cestas de alimentação distribuídas gratuitamente de porta em porta para ajudar as famílias a permanecerem em casas nos bairros mais pobres, mobilização das Forças Armadas e dos meios de comunicação para uma ampla campanha pelo isolamento, — ao invés destas medidas que poderiam salvar vidas, o que Bolsonaro organiza são manifestações semanais pelo fechamento do Congresso e do Supremo e incita ao desrespeito ao isolamento social e ao emprego da cloroquina. Num cálculo por baixo, vingando a estratégia de Bolsonaro, teremos cerca de 5 milhões de pessoas solicitando assistência médica, os mortos serão entre 120 e 250 mil.

Bolsonaro não tem apenas uma Roma, tem um país inteiro, para destruir.


Viva o mito!

Países como o Brasil são fundamentais na estrutura do capital mundial. Primeiro, pela natureza ainda virgem que pode ser transformada imediatamente em mais-valia. Segundo, pela força de trabalho barata, domesticada e dócil ao capital. Terceiro, por contar com uma classe dominante inteiramente integrada e subordinada ao sistema do capital mundial e, ainda, por termos um Estado (que, hoje, inclui também os sindicatos) que mantém sob rígido controle os trabalhadores e operários. Para que a Europa, os EUA, a China etc. possam minorar a crise econômica e os seus mortos, é imprescindível que se mantenha a produção em países como o Brasil.

Um país como a Alemanha adota este critério: quantos precisamos salvar da morte para que a economia se rearticule o mais rapidamente possível? Este número é determinado em função da economia, não da saúde das pessoas, bem entendido. Ainda assim, é claro que quanto maior a mortandade, maior o tempo para a economia se recuperar.

Como nossas classes dominantes são essencialmente sócias minoritárias do capital internacional, suas sobrevivências dependem da eficiência com que servem os países capitalistas centrais. Com a indústria automobilística, por exemplo, produzindo 99% a menos durante o mês de março, a “utilidade” das nossas classes dominantes para com o imperialismo é duramente colocada em questão. Por isso o critério no Brasil precisa ser um tanto diferente do critério adotado, digamos, na Alemanha: quanto precisamos produzir para não perder nossa privilegiada (somos a décima economia mundial etc.) posição de subalternidade no sistema do capital? Em função disso (“lamentamos”, diz Bolsonaro), quantos precisarão morrer?

Esta lógica não é apenas a lógica do governo, é também a lógica do capital (e, portanto, é também a vontade dos grandes capitalistas) instalado no Brasil. Bolsonaro, portanto, tem razão! Neste andar da carruagem, é provável que os capitais abandonem o Brasil! O que ocorreu na Argentina nas últimas décadas do século passado é um fato aterrador! É preciso (“lamentamos!”) reativar a economia, custe o que custar. Para as classes dominante, a morte de centenas de milhares de trabalhadores é tão lamentável quando inevitável! Daí a força de Bolsonaro, daí o silêncio dos grandes empresários (do PIB nacional, dizia um articulista do Estadão) quando se trata do impeachment, daí a posição de Mourão pró Bolsonaro, daí o artigo do Roberto Macedo no Estadão de 21 de maio, daí o predomínio da insanidade de Brasília sobre o país.

Contudo, nunca antes a reprodução do capital requereu o sacrifício de tantas vidas. Por que isso e por que agora?

O insano se torna racional

No século passado, assistimos à produção de uma enorme abundância gerada pela não menor expansão do capital (tanto sob sua forma clássica, quanto sob sua forma “soviética”, “pós-revolucionária” – Mészáros) a todos os cantos do planeta. Como resultado, ainda hoje a capacidade produtiva aumenta mais do que o consumo. Isto inviabiliza o mercado. A oferta estruturalmente maior do que a procura derruba os preços, a produção se inviabiliza e a crise se instala. Chegamos ao “absurdo” de bancos pagarem para quem deles empresta, as petroleiras pagarem para quem comprar delas petróleo…

Para “deslocar” essa contradição, impõem-se o imperativo: ampliar o consumo a qualquer custo. O que implica inescapavelmente em:

1) rebaixar o valor da força de trabalho, principalmente com tecnologias que aumentam a sua produtividade. Com isso cresce o desemprego, compromete-se a capacidade de consumo e a contradição se aprofunda;

2) ampliar o consumo destrutivo, quer pelo aperfeiçoamento da obsolescência planejada, quer pelo desenvolvimento do complexo industrial-militar (e das guerras) e do complexo médico-hospitalar (não apenas laboratórios, planos de saúde etc., como também pela criação de doenças com suas terapias). Temos assim o aumento dos gastos militares dos gastos com saúde, gerando enormes lucros, mas também, multiplicando as dívidas públicas. Aqui também a contradição se aprofunda com o tempo;

3) “eficientemente” transformar a natureza (a “mãe de toda riqueza”, Marx) em mais-valia. A destruição do planeta é em um impulso crescente e incontrolável. Resultado: várias epidemias e crises ecológicas. Além do Coronavírus, Ebola, H1N1, HIV etc.; a epidemia que está matando como nunca cavalos na Ásia, uma praga de gafanhotos no Kenya, uma mortandade nunca vista de abelhas na Europa e nos EUA, um desmatamento que se acelera na Amazônia, o mês de março mais quente da história, o degelo recorde nos dois polos, um aumento da fome que deve matar 265 milhões de pessoas até o final de 2020, incêndios gigantescos na Austrália, na Califórnia e em Portugal que devem se repetir neste ano impulsionados pelo aquecimento global… A lista poderia prosseguir! O planeta está no limite de se tornar inabitável por humanos.

O problema da atual pandemia não está em que as pessoas consomem animais silvestres. Se matarmos todos os animais silvestres, as pandemias se tornarão ainda mais frequentes e intensas. A forma como o capital se apropria da natureza, gera, por exemplo, uma concentração de animais e plantas geneticamente idênticos. Tal concentração é tudo o que uma mutação biológica necessita para gerar novos vírus que terminarão contaminando os humanos. O modo de produção capitalista se tornou essencialmente (ou seja, não pode ser outra coisa) um criadouro de vírus e de epidemias. Para não falar de câncer, doença de Alzheimer, demência, obesidade e diabetes, depressões, doenças profissionais de todos os tipos e assim por diante.

O que é necessário para manter o capital se reproduzindo? Atacar todos os sintomas e deixar a causa intocada. Não é isso o que a melhor ciência faz, hoje? Estudam a pandemia para controlá-la. Raramente, se alguma vez, os cientistas se perguntam pela causa da pandemia. Se os chineses deixarem de comer os animais silvestres, as pandemias terminariam? Evidentemente, não: a causa é a produção destrutiva de humanos e da natureza (ou, o que é o mesmo, da natureza e dos humanos), a causa é o capital. Todas as soluções propostas pelos governos significam que a causa da pandemia permanecerá intocada. Para os capitalistas, decidido está nosso futuro: mais do mesmo! Morram quantos forem preciso!

Bolsonaro: a alternativa!

Para permanecer tudo no mesmo, um país subordinado como o nosso deve produzir a todo custo. É assim que a insanidade de Bolsonaro expressa a necessidade essencial do capital na particularidade do Brasil. Poderia se ter no governo uma pessoa menos insana? Provável que sim. Contudo, Maia (ou Mourão), Lula ou Ciro Gomes, com uma menor insanidade aparente, fariam essencialmente o mesmo cálculo: quantos precisamos matar para que nossas classes dirigentes mantenham seu lugar de subordinação na ordem mundial? Ou, como dizem, “o capital internacional não abandonar o país”?

É isto que explica porque Mourão apoia Bolsonaro, porque a guarda pretoriana cerrou fileiras com a “família imperial”. É isto que explica o silêncio do grande capital e o sustentável apoio de 30% da população a um governante claramente maluco. “É uma guerra!”, anunciou o Nero em Brasília. Tem ele razão. Tem também razão em avaliar que o “barco está afundando”! Não é hora de vacilar! Cresceu a possibilidade de uma “ruptura institucional”. Que morram quantos devam morrer pela Pátria!

A Pátria não somos nós (nunca fomos). A Pátria é o Deus capital.

A insanidade de Bolsonaro, hoje, não é só problema, é também uma possível solução. Um golpe de Estado não está fora do horizonte, desde que seja a melhor solução para a equação: quantos mataremos para manter o sistema girando? Daí a resiliência de Bolsonaro, daí o apoio que recebe dos militares, daí o silêncio dos empresários, dos sindicatos, do PT e o acovardamento dos nossos intelectuais acadêmicos.

Algumas pessoas têm me procurado para esclarecer o que seria a crise estrutural, segundo Mészáros. Um ótimo exemplo são esses dias de abril-maio no Brasil. A insanidade de Bolsonaro tem razão de ser e é ela, justamente ela, o fundamento da sua permanência em Brasília. Bolsonaro fica no poder porque é insano, não o contrário! Crise estrutural? Esta é uma de suas manifestações: o racional é a irracionalidade absoluta! Na produção e no mundo das ideias.

Saída? Só há uma, superar o capital.

Mészáros estava coberto de razão, já em 1983!