NL05 – O golpe de Estado de Bolsonaro

20/06/2020

Restam poucas dúvidas, se alguma, de que no Planalto se prepara um golpe de Estado. Não bastassem a infiltração bolsonarista nas PMs estaduais e na Polícia Federal, nesta última inclusive com a colocação de pessoas de confiança do governo em centenas de postos de comando, tivemos também a publicação do manifesto do golpe, pela pena do General Mourão, no Estado de São Paulo do dia 15 de maio passado. É também indicativo desta possibilidade a mudança de tom dos comentaristas e noticiários da mídia burguesa, em que há cada vez mais frequentes alertas sobre o perigo do golpe, sobre a “ameaça que paira sobre a democracia” e sobre o perigo de manifestações violentas darem aos golpistas o pretexto que necessitam para uma “ruptura institucional”.

O núcleo militar do Planalto, que nos primeiros meses do governo parecia cumprir o papel de moderador dos arroubos de Bolsonaro e seus filhos, está hoje unificado ao redor do Presidente. Mudança de posição que não é difícil de se compreender se levarmos em consideração que entre Maia, que representa também a corrupção estatal institucionalizada, e as loucuras de Bolsonaro, o menos pior aos olhos de Mourão, de Heleno e outros pareça ser a trincheira do bolsonarismo. “Bolsonaro tem exacerbado a divisão interna do Exército, cuja disciplina e hierarquia vêm se desgastando. Muitos oficiais de escalão inferior apoiam Bolsonaro nas redes sociais. Quatro generais com cargos no governo, dois no serviço ativo, têm mais poder do que o comandante das forças armadas, seu superior…. Bolsonaro não parece forte o bastante para desencadear um golpe… mas [os democratas] estão certos em ficar alarmados.” (The Economist, no Estadão de 13 de junho)

Some-se a isto a situação imediata em que nos encontramos sob a pandemia. A falta de coordenação nacional torna a estratégia do afastamento social (a única que pode mitigar os efeitos do coronavírus) pouco eficiente, o que fornece ainda mais argumentos para o pequeno e médio empresariado (cuja sobrevivência depende da abertura da economia) contra os governos estaduais e municipais que perseguem a estratégia do isolamento. Esta circunstância colabora para que uma porção minoritária, porém não desprezível, da pequena burguesia se alie (ou ao menos tenha simpatias) pela abertura imediata da economia proposta por Bolsonaro. Ainda, um enorme contingente de trabalhadores, que depende da renda diária para sobreviver, não apenas não pode seguir o isolamento, como ainda depende cada vez mais da ajuda do governo federal para as despesas mais básicas. As esmolas federais, nesse momento, aumentam o apoio destes setores a Bolsonaro, um efeito similar ao que Lula conseguiu com o Bolsa Família.

Internacionalmente, ainda que o New York Times (o que significa em alguma medida o governo Trump) e o Financial Times tenham recentemente lamentado o perigo que corre a democracia no Brasil, o The Economist se coloca a favor de uma estratégia de enfrentamento da pandemia que preserve as economias imperialistas mesmo que ao custo de centenas de milhares de mortes nos países periféricos. Para financiar a crise das economias centrais é imprescindível a produção de mais-valia em países como o Brasil. Para nosso país, dessa perspectiva, o recomendável seria ativar a economia e manter o isolamento para os setores das classes dominantes. Que morram quantos trabalhadores for necessário para manter o sistema mundial do capital. Como diz o The Economist de 4 de abril, na pg.7, é preciso colocar um valor em dólar na vida humana! Na mesma direção apontam os artigos de Roberto Macedo, no Estadão, dos dias 7 e 21 de maio.

As debilidades da oposição são também um fator favorável ao golpe.


A oposição

Além das posições do Financial Times e do New York Times, acima mencionadas, nas últimas semanas uma aparentemente poderosa oposição se levantou contra o golpe, mais especificamente em defesa da democracia. Há de tudo. Desde o manifesto dos juristas que tem como epígrafe palavras de ninguém menos do que Karl Popper, até o manifesto dos 70% que propõe que todas as diferenças sejam colocadas em segundo plano pela unidade na luta contra o golpe de Bolsonaro. Ciro Gomes, Marina e Fernando Henrique Cardoso se manifestaram no mesmo sentido. Todos os grandes órgãos de imprensa, desde o Estadão até a Rede Globo, formam uma frente unida contra o golpe. Significativo, pois entre outras coisas tem um impacto sobre o preço que Bolsonaro deverá pagar aos deputados e senadores para conter o impeachment, a popularidade de Bolsonaro não para de cair, ainda que mantenha um núcleo de 25 a 30% da opinião pública a seu favor. Mas os outros 70%, cada vez mais nitidamente, viram suas costas ao governo. Ainda, nesta semana tivemos o início de uma coluna de Luis Trabuco, do Bradesco, no Estadão. Fosse ele favorável ao golpe, não assinaria uma coluna no Estadão. Talvez isto sinalize uma oposição ao golpe de setores decisivos do grande capital.

Esta situação parece indicar que, se o golpe vier e tomar o poder, no dia seguinte contará com uma vasta oposição, capaz de fazer estragos em um governo ditatorial, como o final da Ditadura Militar a partir de 1978-9 demonstrou. Contudo, tal oposição não é forte o suficiente para evitar o golpe. Por duas razões fundamentais. A primeira é que uma oposição apenas e tão somente aos aspectos político-culturais (o autoritarismo, o abandono das bandeiras ecológicas, a perseguição aos “minoritários” e, no caso de um golpe, some-se a isso a censura à imprensa, a perseguição política, as prisões etc.). E ela não pode ir além disso. Se a plataforma desta oposição se estender para incluir o que interessa de fato aos trabalhadores e operários (uma efetiva distribuição de renda, com uma também efetiva melhoria das condições de vida e de trabalho da maioria da população brasileira e assim por diante), corre-se o risco de todo o capital junto com seus órgãos de imprensa descobrirem “virtudes até então desconhecidas” de Bolsonaro e se aliarem aos golpistas. Uma plataforma democrática muito modesta que, digamos, proponha, a expropriação de 80% da riqueza dos 0,01% dos brasileiros mais ricos para financiar as típicas política públicas democráticas e burguesas, romperia a frente democrática. Por uma razão muito simples: coloca em questão a concentração de renda no país… e não é necessário que se diga mais nada!

Novamente a história recente pode nos dar uma lição: quando a oposição à Ditadura Militar deixou de ser administrável pelos generais? Quando as máquinas pararam e os operários entraram em cena, com as greves de 1978-9. Sem a participação dos operários, a frente contra Bolsonaro é frágil. Basta iniciarem as melhorias na economia para a grande burguesia e a pequena burguesia migrarem para o lado da ditadura, bem como parcela importante dos trabalhadores que passa a contar com mais empregos etc. De novo, o passado pode ser de alguma serventia: não foi durante a repressão mais forte e o conservadorismo mais arraigado que a Ditadura Militar teve sua maior popularidade?

Em segundo lugar, porque essa oposição carece de qualquer dispositivo militar que possa se contrapor ao golpe. Como é muito pouco provável que, uma vez dissolvidos o Congresso e o Supremo, a porção legalista das Forças Armadas venha a pegar em armas contra seus “irmãos” bolsonaristas, basta de fato um jipe com três soldados e um cabo para fechar o Supremo e um pouco mais para fechar o Congresso. Lembremos que há pouco, no dia 11 de maio, Maia explicitou sua posição: não é a democracia que está ameaçada, mas apenas a “democracia representativa”. O quer isso dizer senão que Bolsonaro é um democrata, apenas não um democrata “representativo”. A ditadura também não se afirmava como democrática?

Há, ainda, um terceiro fator a ser considerado.

Desde que tomou posse, jamais o governo Bolsonaro contou com a unidade interna que hoje possui. Dos militares da reserva e da ativa, até os ministros civis (a exceção parece ser a Ministra da Agricultura, Tereza Cristina) finalmente a unidade de comando foi alcançada por Bolsonaro, ainda que a um preço elevado (Bebianno, Gen. Santos Cruz, Moro, Mandetta… até Regina Duarte). Sua aproximação ao que de mais pobre e corrupto possui o Centrão neutralizou no Congresso as iniciativas por seu impeachment e parece dotar o governo, pela primeira vez, de uma base parlamentar. E é a ala militar do governo que conduz esse “toma-lá-dá-cá”, Ao mesmo tempo, o aprofundamento das consequências da pandemia e da crise econômica tendem a diminuir a popularidade do governo. Terá também algum efeito sobre a população a revelação das investigações em andamento, o envolvimento de Bolsonaro desde com a produção das Fake News até com as milícias. Esta situação parece indicar que o tempo corre contra os golpistas, já que a popularidade do governo mostra uma tendência declinante. Por isso, se o golpe for vier, não deve tardar muito.

Se o golpe vier, como será?
 

Muito difícil se saber. Nem sequer os golpistas, que em alguma medida controlam o início do golpe, conseguem saber as suas consequências. Os golpes de Estado possuem sempre um elemento de aventureirismo e de imprevisibilidade. Ressalva feita, alguns indícios talvez possam ser apontados.

Quando um golpe de Estado rompe a hierarquia do poder institucionalizado, há um momento de caos. Mesmo entre os golpistas e de seus apoiadores organizados, muitas vezes não se sabe a qual autoridade obedecer. A falta de uma coordenação claramente estabelecida e a adrenalina que corre solta resultam, não raramente, em que as organizações locais ajam com grande liberdade e iniciativa. Os agrupamentos bolsonaristas, a maior parte deles armados e com munição de sobra (graças ao aumento dos limites de munição que podem comprar legalmente) provavelmente tomarão a inciativa local e a perseguição aos “comunistas” terá início. Em diversos locais, deve se esperar o envolvimento de milícias nesta perseguição. Não seria nenhuma surpresa se as listas dos “comunistas” elaboradas antecipadamente pelos agrupamentos locais sirvam para a perseguição, prisão e, no limite, mesmo execução de democratas, de feministas, de líderes dos ditos movimentos minoritários, de professores, jornalistas, militantes de todas as ordens etc. Como o bolsonarismo considera comunista os ministros do Supremo Tribunal Federal, os Mesquitas (do Estado de São Paulo), as principais lideranças católicas e judaicas, os petistas e psolistas e até mesmo os Marinhos da Rede Globo, não é difícil de imaginar a amplitude do arco político dos perseguidos.

Portanto, o que pode ser antevisto é uma pequena porção das Forças Armadas dissolvendo o Congresso e fechando o STF, bandos de bolsonaristas percorrendo as ruas em perseguição aos “comunistas” e unidades de censores ocupando as redações dos principais meios de comunicação. A seguir, a paralisia do restante das Forças Armadas que, se não concordam com o golpe, também não irão pegar em armas contra seus “irmãos” golpistas em defesa desta democracia —de fato e realmente — podre de corrupta.

Algumas semanas após, o golpe entrará em uma nova fase. Frente à gigantesca oposição, alguns preferirão uma estratégia mais moderada, de modo a atrair os setores oposicionistas “menos radicais”. Outros defenderão uma repressão até às últimas consequências. As forças golpistas se dividirão e sua parte preponderante tenderá a sufocar a outra. Isto, em alguma medida importante, determinará a estratégia da ditadura nos seus primeiros meses de vida.

O que virá a seguir, depende de tantos fatores que é impossível qualquer previsão que não seja o mais puro exercício de adivinhação. Como sempre, o momento predominante desta evolução deverá ser o desenrolar da crise econômica. Junte-se a ela a pandemia, a crise ambiental, o aprofundamento da crise estrutural mundial do capital etc. e todos os eventos imprevisíveis que trarão…

Os revolucionários

Contudo, apesar destas incertezas, a experiência da luta revolucionária tem algo a dizer no enfrentamento de situações deste tipo.

A esquerda em geral está profundamente exposta e será muito rapidamente desbaratada,

Seu descompromisso para com as questões de segurança a conduziu a uma situação de extrema fragilidade. Forjou uma geração de militantes de comportamento liberal e que tratam a internet como se fosse um espaço seguro para troca de informações. Até as fotografias das reuniões são divulgadas e o Facebook se encarrega de rastrear as relações sociais para a repressão. As regras mínimas de segurança são desconhecidas da ampla maioria dos militantes. O livro do Cid Benjamin, lançado no ano passado, O Estado policial e como sobreviver a ele é, neste contexto, da maior importância, bem como os relatos da repressão como A casa da vovó, de Marcelo Godoy (tem no site da Library Genesis) e a biografia do torturador Sergio Paranhos Fleury, por Percival de Sousa (Autópsia do Medo). Conhecer a história dos golpes também ajuda (por exemplo, os primeiros dois volumes de As ilusões armadas (também na Library Genesis), por Elio Gaspari, ou a Pequena História da Ditadura Militar, de José Paulo Netto).

Três passos básicos são a cada dia mais urgentes:
 

  1. Ter a certeza de que as organizações estão infiltradas e que os endereços de e-mails estão todos comprometidos. Adotar um esquema de compartimentação das informações e montar um esquema de comunicação seguro, a partir do emprego de VPN, com o navegador Tor e com e-mails criptografados (Tutanota, Protonmail etc.) é o primeiro passo. Os celulares são a todo momento rastreados, não pelo chip mas pelo número do imei. Deve se ter isto em vista quando se articula uma rede segura de comunicação.
     
  2. O militante que se encontrar exposto precisa construir sua ponte de retirada. Deve ter um lugar para se abrigar, ao menos por alguns dias, e ter algum dinheiro consigo. Cartão de crédito e caixa automáticas serão impossíveis de serem empregados. Cada caso é um caso, claro. Difícil uma regra geral. Mas o bom senso é sempre importante.
     
  3. Facebook, Instagram, Whatsapp, Gmail, Hotmail, Yahoomail etc. são fontes de informação preciosas para a repressão. Sempre que conduzam à identificação de militantes, as contas devem ser o quanto antes apagadas, os e-mails cancelados, os perfis no Facebook, Instagran devem ser deletados etc. Tendo em vista que, mesmo depois de deletados, os dados permanecessem por meses nos servidores, esta medida deveria ser tomada o mais rapidamente possível.
     
  4. Por fim, tal como “salada e canja de galinha não fazem mal a ninguém”, quando se trata de segurança política, o exagero é prudência… Não há exagero quando se trata de segurança!
     

Lembremos o início deste artigo: o mais provável é que os golpistas não tenham força para tomar o poder. O mais provável, ainda, é que não tenhamos um golpe de Estado que seja capaz de sobreviver por muito tempo. Mas o perigo nunca foi maior e se proteger é algo sensato. Como diz o The Economist, os democratas “estão certos em ficar alarmados” e os revolucionários precisam se preservar.