NL06 – FHC, Lula, Dilma… Bolsonaro

01/07/2020

Como se tornou possível um fenômeno como Bolsonaro? Não falo da onda conservadora, que é um fenômeno muito mais complexo do que Bolsonaro. Certamente, sem o conservadorismo em ascensão, dificilmente ele sequer seria imaginável. Contudo, sem eliminar essa relação, há uma autonomia entre estes dois fenômenos. A expressão do conservadorismo no Brasil não precisaria ter necessariamente a coloração bolsonarista, pois há conservadores mais capazes e competentes para dirigir o país em nome do capital.

Por que, então, Bolsonaro? Curso e grosso: por que os democratas o protegeram!
 

O início de tudo

O fim da Ditadura Militar assistiu ao surgimento de uma nova geração de militantes de esquerda, separada da antiga esquerda pela repressão política dos anos de 1968-76.

Com uma origem tão descentralizada quanto os movimentos populares e com um desenvolvimento tão local as lutas por escolas, creches, asfalto, saúde etc., talvez a sua marca ideológica mais significativa tenha sido um arraigado ecletismo e uma ignorância profunda. Foi uma geração para a qual a literatura revolucionária clássica permaneceu em larguíssima medida desconhecida, o conhecimento da história não ia além do mais básico, quando muito, e para a qual o conhecimento da filosofia se limitava a manuais como Os princípios fundamentais da filosofia, de G. Politzer.

Tal confusa e eclética concepção de mundo serviu de base a uma estratégia política que se queria revolucionária, mas era de fato conservadora. Ignorantes e ecléticos, o que poderiam os revolucionários sonhar em converter o capitalismo em socialismo pela mediação do Estado? Dois foram os autores decisivos, ainda nos anos de 1970: Regis Debray e Mao-Tse-Tung. O primeiro postulou que as classes dominantes latino-americanas tinham que implantar ditaduras porque não suportavam a democracia. Portanto, como a democracia seria incompatível com o poder das classes dominantes latino-americanas, conquistar a democracia seria, dialeticamente, a conquista do socialismo. Mao-Tse-Tung contribui com o texto “A nova democracia”. Seu argumento: a democracia em países coloniais era a antessala do socialismo, pois a miséria provocada pelo capitalismo era tão grande que as massas, ao entrarem na política pela democracia, expulsariam do poder os capitalistas e instalariam o socialismo. Debray somado a Mao dava a direção estratégia da nova geração de militantes: a conquista da democracia seria, de fato, a conquista do socialismo. Pela democratização do Estado chegaríamos ao socialismo!

Gramsci, Lefort e Boaventura de Souza Santos

Vieram os anos de 1978-1979. No primeiro semestre de 1978, o Movimento do Custo de Vida promoveu uma manifestação contra a carestia com mais de 5 mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo. 1975 já havia assistido à Missa Ecumênica pelo assassinato de Vladimir Herzog e, em 1976, o assassinado do operário Manoel Fiel Filho provocara outra significativa manifestação contra a Ditadura. O movimento estudantil se rearticulava. Mas foram as greves de 1978 e 1979, seguidas pela organização do PT e dos novos sindicatos que se reuniram na CUT, que alteraram a correlação de forças e colocaram os militares na defensiva. A transição para a democracia se tornou o problema central: a esquerda deveria ou não apoiar a Assembleia Nacional Constituinte, a qual se tornava a cada dia mais inevitável?

Foi neste processo que, da Universidade, veio a contribuição teórica que faltava para elevar a um padrão acadêmico o ecletismo e a ignorância da concepção de mundo que já vigorava na nova geração de militantes. Sinteticamente: Claude Lefort (com a contribuição da Marilena Chauí), em A invenção democrática (1983), contribuiu com a fantasia de que democracia seria conquista dos trabalhadores e que se caracterizaria por ser um regime em constante aperfeiçoamento, uma obra inacabada, enquanto o totalitarismo seria a paralisia histórica. Gramsci, trazido ao Brasil pela sua leitura reformista principalmente por Carlos Nelson Coutinho, conferiu um ar de esquerda às teses de que se deveria conquistar os altos postos de comando do Estado para se transitar ao socialismo. Apenas por uma “reforma revolucionária” das instituições, reforma que tivesse a “democracia como valor universal” (Carlos Nelson Coutinho, 1979), poder-se-ia transitar ao socialismo. Boaventura de Souza Santos colocou a cereja nesta torta ideológica: a via civilizatória só poderia ser um constante “democratizar da democracia” (2002).

“Iluminada” pelas luzes acadêmicas, a ampla maioria da esquerda terminou por confluir com a oposição burguesa e mesmo conservadora, oposição esta que já estava em amplas negociações com os ditadores. O acordo seria selado com a Constituição de 1988: o país passaria a ter uma democracia com a condição de que os grandes interesses econômicos e o aparato político-repressivo não fossem atingidos. Assim foi feito: transitamos para a democracia sob os auspícios dos ditadores.

5 mandatos presidenciais… e nada!

Passamos por Collor-Itamar, dois mandatos de Fernando Henrique, dois mandatos de Lula, um mandato de Dilma: 5 mandatos, deixando Collor-Itamar de fora! Em todos eles se manteve o acordo para se preservar o aparelho repressivo, os assassinos e torturadores e os arquivos secretos! Nada foi tocado! Todos os 5 presidentes foram perseguidos políticos. Dilma foi barbaramente torturada por Ustra. Não se tocou no aparelho repressivo, os criminosos contra a humanidade não foram sequer levados a julgamento!

Contudo, seria profunda injustiça afirmar que esses 5 presidentes nada fizeram. FHC criou uma indenização de 100 mil reais para os perseguidos, presos e torturados. Ao se aceitar a indenização monetária, renuncia-se ao direito de processar o Estado ou os membros dos órgãos de repressão. Lula ampliou a concessão do benefício, Dilma o generalizou ainda mais. Em poucas palavras, comprou-se, àqueles dispostos a vender, a renúncia ao direito de processar o Estado e seus torturadores e assassinos. A preservação do aparelho repressivo foi ativamente perseguida pelos governos democráticos. Com o apoio das forças mais significativas da “esquerda”, convém que seja lembrado, do PT ao PC do B, do PCB ao PSOL. Para não deixar dúvidas: a legislação repressiva mais dura depois da Ditadura foi obra… do governo Dilma, depois aprimorada por Temer!

“Democratizar a democracia” e reformar revolucionariamente o país pela conquista de elevados postos de comando do Estado não em deu em outra coisa: Bolsonaro no Planalto. Não desmontar o aparelho repressivo, não levar os torturadores à justiça, não processar os criminosos contra a humanidade apenas preservou figuras como o General Heleno (assessor do General Silvio Frota), o General Mourão e Bolsonaro para ocuparem o Planalto. “Democratizar a democracia” serviu, realmente e de fato, para manter no Estado os partidários da Ditadura.

Agora eles estão no Planalto.

As lições da história

A estratégia democrático-popular (que concebe o socialismo como resultado de uma transição por meio do Estado, pela democratização constante da sociedade) apenas resulta na vitória da reação. Em todos os lugares do mundo. Nos países imperialistas, a estratégia democrática que predominou sob o Estado de Bem-estar deu lugar ao neoliberalismo de Reagan, Thatcher e Trump. No Chile de Allende, deu em Pinochet. No Brasil, resultou em Bolsonaro. A lista poderia prosseguir. Desnecessário. Basta assinalar que nunca resultou nem em uma democracia mais profunda, nem sequer em uma distribuição de renda – para não falar na superação do capital.

Agora, essas mesmas forças que ativamente preservaram o aparelho repressivo do Estado querem que nos juntemos a elas para, numa nova frente democrática, nos opormos a Bolsonaro. Mas a qual preço? A primeira e maior finalidade desta frente é desmontar o aparelho repressivo do Estado, agora acrescido das milícias? Ou visa apenas colocar no Planalto um outro político para novamente negociar a sobrevivência do núcleo repressivo do Estado?

Bolsonaro só se tornou a expressão do conservadorismo porque os democratas o protegeram da justiça e o mantiveram como força política viva no interior do Estado. Tenhamos esta lição na mente, no confronto com o governo Bolsonaro. Temos que saber quem são nossos aliados e quais as forças que são aliadas dos nossos inimigos!

Uma questão fundamental, como dizemos, ficou sem ser tocada: quais as causas dessa onda conservadora na qual surfa Bolsonaro? Isso é uma questão para uma Newsletter futura.