NL07 – Pandemia, por quê? Por que agora?

20/07/2020

Comecemos pelo início: o que é uma pandemia?

Tomemos como exemplo a nossa atual epidemia, causada por um vírus, o SARS-COV-2.

O vírus é um dos menores seres vivos, uma esfera de gordura e proteína que contém no seu interior uma molécula de RNA (um ácido que contém o código genético do vírus). O vírus se reproduz dissolvendo uma molécula que faz parte da membrana externa de uma célula e nela inserindo o seu RNA. O RNA começa então a se “alimentar” da célula que foi invadida e reproduz milhares de cópias de si mesmo. Novos vírus, milhares deles, vão sendo formados no interior da célula até que esta explode, liberando os novos vírus para infectarem outras células e assim por diante.

O vírus é muitas vezes menor do que uma célula. Muitos vírus costumam atacar uma mesma célula ao mesmo tempo e por isso é comum que o RNA de um vírus se misture com o de outro vírus e que eles troquem material genético. Então, se um vírus possui uma variação que melhora sua reprodução, esta variação tende a ir predominando e ela é repassada aos outros vírus que estão se formando junto com ele. É assim que boa parte das mutações dos vírus acontecem. Mutações são as variações no código genético que ocorrem quando um ser vivo se reproduz.

Como existe uma enorme quantidade de vírus no ambiente, com frequência ocorre de uma mesma célula ser invadida por vírus diferentes (por exemplo, um vírus que normalmente se reproduz no morcego ataca a célula de um porco no mesmo momento em que esta célula está sendo invadida por um vírus da gripe suína). Surge assim a possibilidade de o vírus da gripe suína “receber” parte do material genético do vírus do morcego e, vice-versa, do vírus do morcego receber “informações” genéticas do vírus da gripe suína. Surge um vírus novo, meio suíno, meio morcego.

Por isso, ao examinarmos o RNA de um vírus é possível descobrir sua evolução. Esses “pedaços” de RNA de diferentes vírus, ao se associarem, vão “escrevendo” a história do vírus. Começou em tal planta ou animal, “pegou” este pedaço de RNA desta outra planta ou animal, depois infectou este outro ser vivo e pegou um terceiro “pedaço”. É isso que nos dá a certeza, por exemplo, de que o SARS-COV-2 não foi produzido em um laboratório, que ele não é um plano da China para destruir a civilização ocidental, como querem alguns bolsonarista. É muito mais do que isso, como veremos logo abaixo.

Como esta troca de material genético ocorre ao acaso, nem sempre elas são favoráveis. Algumas vezes, contudo, dão origem a vírus com características novas, por exemplo, com a capacidade de atacar células humanas e, então, na primeira oportunidade, um vírus que só existia nos suínos e nos morcegos passa aos seres humanos. Foi isso o que ocorreu, tudo indica (há pesquisas em andamento), com o SARS-COV-2, que provoca a COVID-19.

Os vírus se transformam cotidianamente, novos vírus surgem com frequência, entre os humanos, entre as plantas e entre os animais. Como existe uma fantástica quantidade de vírus no planeta, novos vírus estão surgindo a cada minuto em todos os lugares.

Um vírus, contudo, não faz uma pandemia!

Do vírus à pandemia
 

Caso um ser humano seja infectado, mas não tenha contato com outros seres humanos ou tenha contato com poucos seres humanos, o vírus se propaga apenas neste grupo e a doença pode matar a todos, ou o grupo pode desenvolver resistência a ela, ou ainda ela pode ficar endêmica, isto é, passa a fazer parte da vida daquela população. Mas não vai além disso.

Para que uma pandemia (uma epidemia em escala mundial) aconteça, é preciso que haja condições para que o vírus (pode ser também uma bactéria, mas isso não vem aqui ao caso) se propague para um número muito grande de indivíduos em todo o planeta. Para que isso ocorra, algumas condições precisam ser atendidas.

Primeiro, é preciso que haja uma grande uniformidade genética. Por exemplo, quando plantamos milhões de quilômetros quadrados com a mesma soja, geneticamente idêntica, estamos criando as condições ideais para que um vírus surja e rapidamente infeccione toda a soja. Isto acontece todos os anos e, por isso, os grandes vendedores de sementes do mundo vivem o tempo todo buscando criar variações genéticas que deem origem a plantas que sejam resistentes às novas “pragas”.

A China possuía, neste começo de ano, 310 milhões de porcos, a União Europeia outros 148 milhões, os EUA mais 78 milhões e assim por diante [1]. Todos confinados ou semiconfinados, com raças muito assemelhadas, isto é, com uma considerável homogeneidade genética. Tal como com a soja, isto também é um cenário ideal para um novo vírus contar com uma rápida difusão. Com as galinhas, os números são ainda maiores: estima-se em 19 bilhões a quantidade de galinhas no plante, China, EUA e Brasil sendo os maiores criadores [2].

Ao mesmo tempo, destruímos florestas, poluímos os oceanos e a atmosfera, eliminamos do planeta um número incontável de espécies: a natural diversidade genética vai sendo destruída pelo modo como o capitalismo trata a natureza. Criamos um mundo que apresenta uma homogeneidade genética que nunca existiu antes e isto atende à primeira condição para que um vírus se transforme em uma pandemia.

O capitalismo e a pandemia

O desenvolvimento da capacidade produtiva do capital atende às outras condições para que um vírus se converta em uma pandemia.

O capitalismo forçou uma humanidade que era essencialmente agrícola a se tornar urbana. Hoje, mais da metade da população do planeta vive em centros urbanos. Além disso, o desenvolvimento do capital também promoveu uma gigantesca concentração da riqueza, de tal modo que a pobreza da maioria e a riqueza de uma ínfima minoria não param de crescer. Uma é irmã siamesa da outra. Hoje somos 7,7 bilhões de humanos, 57% habitando as cidades, com 1% de população possuindo 44% e 57% possuindo menos de 2% da riqueza mundial [3]. Uma enorme concentração de humanos, em áreas pequenas e com as piores condições de saúde, de alimentação e de higiene.

Ao mesmo tempo, o capital gerou uma malha de transporte e comunicações que faz com que um vírus desse a volta ao redor do planeta (antes da pandemia deste ano, claro) em poucos dias.

Sopa no mel para uma rápida propagação de doenças: bilhões de humanos aglomerados em áreas pequenas nas piores condições de vida, com a biodiversidade originária do planeta sendo substituído pela homogeneidade genética que conhecemos e com meios de transporte que conectam cada localidade ao planeta como um todo e – o que mais um vírus necessita para se converter em uma epidemia?

Nada, de fato nada.

Esta é uma velha história. Nenhuma uma novidade. Por exemplo, Laura Garret, em 1994, em seu livro A praga por vir, demonstrou em detalhes como a questão não era se viveríamos uma pandemia, mas apenas o quando ela viria. “Os sinais eram claros.”, comenta o site “netnature”. Tivemos as epidemias do “Hendra em 1994, do Nipah em 1998, do Sars em 2003, do Mers em 2012 e do Ebola em 2014; todas essas grandes epidemias humanas foram causadas por vírus que se originaram em hospedeiros de animais e passaram para humanos. O COVID-19 é causado por uma nova variante do mesmo coronavírus que causou o Sars” [4].

Com a sua sanha por lucros, o capitalismo invade a natureza, destrói a diversidade e a substitui pela homogeneidade genética; concentra humanos miseráveis aos bilhões e cria todas as condições necessárias para que pandemias venham a fazer parte do cotidiano da humanidade daqui para a frente.

O vírus da CODIV-19, por si só, não mataria tanta gente. Sem a ajuda do capitalismo, nenhum vírus teria este poder!

A pandemia, por isso, é muito mais uma criação humana do que um evento da natureza. De fato, precisamente, é uma criação do capital.


Por que agora?

Estamos ocupados com a COVID-19. Mas há muito mais ocorrendo no mundo.

Uma epidemia mata cavalos na Ásia e outra mata suínos na África; temos uma praga de gafanhotos na África e na América do Sul; o degelo nunca foi maior tanto no Polo Norte quanto no Sul, a Sibéria registrou temperaturas de 38 graus e o degelo do solo está fazendo construções e o oleoduto que transporta o petróleo de lá para a Europa, desabarem; um fungo está tornando este ano a neve dos Alpes cor de rosa, o que deve aumentara a temperatura e o degelo na região; a chikungunya, a dengue, a zika, a tuberculose, a febre amarela, a esquistossomose e a leishmaniose voltam a se expandir. A mais forte epidemia de Ebola acabou de ser controlada na África. Passarinhos morrem como nunca na Europa e abelhas estão morrendo em quantidade sem precedente na Europa e nos EUA. Eliminamos do planeta milhares de seres vivos a cada ano, muitos dos quais nem chegamos a conhecer direito. Os bancos de corais, os manguezais, as correntes marítimas, a concentração de gás carbônico nos oceanos… tudo está sendo afetado pelo modo como o capital trata o planeta. Até mesmo a varíola, que se julgava erradicada do planeta, volta a emergir na África e na Ásia. É mais do que provável que novas pandemias surjam e num espaço de tempo não muito longo.

Por que agora? O que está acontecendo?

Estamos provavelmente vivendo o que Engels denominava de salto qualitativo e que Lukács, com maior precisão, chamou de salto ontológico. Alterações que vão se acumulando terminam resultando em uma alteração da qualidade, uma alteração ontológica, da totalidade. Ao destruir o planeta e concentrar os seres humanos do modo como o fez, ao produzir uma miséria crescente e forçar os humanos a viverem nas cidades que cobrem o planeta, ao substituir a diversidade por uma homogeneidade genética insana – ao fazer tudo isso e muito mais, o capitalismo colocou toda a humanidade em uma situação histórica absurda. Temos o conhecimento e a riqueza para vivermos todos muito bem, mantendo o planeta em condições habitáveis aos humanos e, contudo, fazemos exatamente o inverso: promovemos a miséria e uma meio ambiente crescentemente hostil aos humanos.

É bem possível que estejamos vivendo o ocaso da humanidade capitalista. Um processo que pode ser mais longo ou mais breve, impossível se predizer. Contudo, a cada dia fica mais claro que a humanidade tem que optar entre sua sobrevivência e o capital.

Lembram quando, em 1844, um sujeito disse que ao destruir a natureza, os seres humanos destruíam a si mesmos, porque, afinal de contas, também somos parte da natureza? Pois bem, ele estava certo. Seu nome? Karl Marx.

Referências externas

[1] https://www.statista.com/statistics/263964/number-of-pigs-in-selected-countries/

[2] https://www.worldatlas.com/articles/how-many-chickens-are-there-in-the-world.html

[3] https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS. https://inequality.org/facts/global-inequality/#global-wealth-inequality

[4] https://netnature.wordpress.com/2020/05/01/o-coronavirus-e-a-maior-falha-de-politica-cientifica-global-em-uma-geracao/