17/12/2020
Charles, Anjo 45
protetor dos fracos e dos oprimidos
Robin Hood dos morros, rei da malandragem
um homem de verdade, com muita coragem
só porque um dia Charles marcou bobeira
e foi sem querer tirar férias numa colônia penal
(Jorge Bem)
No decorrer de 2010, a mídia mundial ocupou-se dos lamentáveis confrontos que ocorreram entre a polícia carioca e os traficantes de drogas de duas comunidades do Rio de Janeiro, a Vila Cruzeiro e o Morro do Alemão.
As matérias jornalísticas estamparam em seus slogans, de maneira geral, frases do tipo: “enfim, a polícia enfrenta o problema”; “Pela primeira vez, o Estado joga duro contra o tráfico”; “Polícia faz operação de guerra na cidade Maravilhosa”; ou “com força e inteligência, governo do Rio vence a guerra contra o tráfico”. Aqui não se incluí, por motivos óbvios, as muitas expressões utilizadas pelos programas mais sensacionalistas.
De todo modo, o que a mídia – inclusive a que se intitula alternativa –, a polícia e o Estado não mostraram foi a origem, o progresso e a organicidade desse lastimoso problema, tampouco analisaram a questão tomando como base os moradores das favelas.
Mas por que retornar um fato que ocorreu há uma década?
Há muito tempo que a violência, destacadamente a urbana, ganha o espaço do debate político. Nos últimos anos, sob o efeito do que se convencionou chamar de crime organizado, esse debate ganhou contornos dramáticos com os episódios de controle de facções que, de dentro de presídios, comandam e monitoram o tráfego de drogas, o comércio de armas e distribuição de produtos e serviços em bairros, comunidades e favelas, especialmente no Rio de Janeiro, mas com ramificações em Estados como Amazonas, Ceará, Rio Grande do Norte, entre outros.
A classe média atrasada tupiniquim e seus intérpretes pseudocientíficos, que usam e abusam de citações sociológicas cunhadas do alto de um senso comum acadêmico branco e imperialista (geralmente vindo da França) não conseguem esclarecer a essência do fenômeno da violência urbana. A miopia desses funcionários de manutenção da ordem está longe de comunicar-se com a realidade. Quando a problemática envolve a favela, o entendimento do real fica ainda mais desfocado, quando não completamente distorcido.
Para complicar ainda mais as interpretações equivocadas desses ventríloquos, que não por acaso são muito bem aproveitadas e defendidas pelos canais midiáticos, a favela é apresentada como um lugar bom de viver, de morar, de negociar e até para a diversão.
Passou a ser comum a artistas, políticos, jornalistas, religiosos, futebolistas, intelectuais, entre outros ocupantes que se aproveitam da mídia, a defesa da favela como espaço aprazível para a convivência satisfatória das pessoas. Interessante observar que o endereço desses comunicadores da desgraça alheia, está longe, bem longe da favela. Esses aproveitadores não têm coragem de dizer que comunidade sem saneamento básico, sem infraestrutura, com casas mal iluminadas, que não têm acesso à água, quanto mais água potável, não serve para ninguém morar.
Sobre a pomposa expressão Lugar de fala, atualiza-se toda uma má sorte de interpretações que não consegue sequer se aproximar do âmago da questão. O serviço que esses bem-aventurados defensores da favela prestam ao capitalismo, não obstante, é gigantesco. Contribuem para que os habitantes dessas comunidades se sintam bem e aceitem passivamente como condição natural suas miseráveis existências. Haja vista que o mais importante é o Lugar de fala.
O cineasta Sérgio Luís Bianchi empregou em seu filme, “Quanto vale ou é por quilo?”, uma expressão muito bem apropriada para refletir a utilização que é feita hoje do desalento de viver sem as mínimas condições materiais de vida: “Quanto mais miserável melhor”. Isto é, para os comunicadores da desgraça dos outros, se a condição de vida da maioria dos moradores das comunidades periféricas das grandes cidades brasileiras não mudar, senão se aprofundar, desde que se respeite o Lugar de fala, tudo está em seu lugar.
Por isso, o ocorrido no Rio de Janeiro, com destaque para a invasão da Vila Cruzeiro pela polícia militar carioca em novembro de 2010, nos serve de partida para refletir a violência urbana, as facções, as organizações prisionais entre outros problemas que aqui se interligam como, por exemplo o racismo (a questão racial abordarei em uma outra oportunidade). Não se pode deixar de registrar, contudo, que a luta de classes, sob o efeito da crise estrutural do capital, é o pano de fundo onde se desdobram essa lamentável situação.
Os eventos de 2010, como era de se esperar, foi um prato cheio para a mídia e seus intérpretes da hora. Para apimentar a situação, o país acabava de sair de uma eleição para presidente da república, governadores, senadores e deputados. Pronto: democracia, cidadania e inclusão social deram o tom da prosa nos debates midiáticos. O problema, para tais interpretações, não se articula ao estado atual do capitalismo em crise profunda, onde a periferia capitalista procura nova forma de organizar seu lucro.
Nem pelo menos um dos defensores da ordem e das favelas, calçado em seus pomposos Lugares de fala, preocupou-se em analisar a questão pondo em revelo os concretos problemas das pessoas que moram nessas comunidades. O debate se deu como se a favela não tivesse origem e contexto; como se a questão fosse exclusivamente caso de polícia e nada mais.
Ariano Suassuna, calçado em sua fina ironia sertaneja e apoiado nos ombros de Euclides da Cunha, insiste em descrever a origem do nome favela. Derivada da palavra “fava/o”, favela: cnidosculus phyllacanthus, significa uma árvore pequena, cerca de 5 metros de altura, caracterizada pela distribuição irregular de seus galhos, tronco com folhas esbranquiçadas e repletas de espinhos produtores de certa substância química cujo contato com a pele causa queimaduras.
A caatinga nordestina é rica na proliferação dessa planta. Após a Guerra de Canudos, vitoriosa por ter recrutado soldados do sertão da Bahia, já que os militares vindos do Rio de Janeiro – então capital do país – não conseguiam conviver bem com as toxinas geradas pela planta; os militares quando chagaram ao Rio, sobretudo os subalternos, ganharam moradias em morros da cidade Maravilhosa. Com base nesse quadro, o nome ganhou o significado que tem hoje. A evolução da história foi responsável por permitir, paulatinamente, a transformação do desígnio original para o atual e pejorativo sentido de comunidade da periferia.
Diversos conjuntos habitacionais construídos na periferia do Rio de Janeiro pela ditadura empresarial-civil-militar, mesmo com casas de alvenaria, saneamento mínimo e construções horizontais, assumiram a cara de favelas. Para esses conjuntos, o Estado levava os desabrigados das enchentes, alguns sem tetos das ruas cariocas, e fugitivos do que se chamou de indústria da seca nordestina. Os seus moradores garantem, por suas origens de classe, a marca inefável e principal das favelas. A comunidade Cidade de Deus é um bom exemplo desse arranjo de moradias destinadas aos que não têm onde morar e já foi refigurada em literatura e em cinema.
Mas a favela, para boa parte da intelectualidade, bem como de ex-moradores que se locupletam com sua precariedade, passou a ser cult. O cinema brasileiro, em sua versão hollywoodiana, a descobriu, chegando a dar nome ao que se filma nessas comunidades de Favela movie. Não obstante tanta euforia com a favela e sua relação com o comércio e distribuição de drogas e outros produtos/serviços, são mínimas as abordagens cinematográficas ou mesmo vindas da literatura que se preocupam em esclarecer o receptor sobre o âmago da questão.
O regime empresarial-civil-militar deu uma grande ajuda a instrumentalização da criminalidade brasileira. Com o endurecimento da vida social a partir do conhecido AI-5, o governo promoveu o encontro entre diversos presos políticos: artistas, intelectuais, jornalistas, com criminosos que cometeram delitos considerados ‘comuns’ (crimes não políticos). Esse encontro foi muito profícuo para a produção dos recursos humanos da criminalidade. Os assaltantes de bancos, os sequestradores, os ladrões de carro, os traficantes de drogas, entre outros presidiários de origens diversas, ganharam do regime empresarial-civil-militar um belo curso de planejamento, gestão, execução e aferição em tática de guerrilha, ministrado pelos presos políticos. Isso possibilitou a organização e a formação necessária para que esse tipo de atividade mercantil se proliferasse de forma ‘organizada’ (com alguma sistematização).
Em tempo, há de se pontuar que a ditadura varguista concedeu um prestimoso serviço a essa moldura. Sob acusação de subversão e associação ao comunismo, o governo ditatorial de Getúlio Vargas prendeu por onze meses o escritor Graciliano Ramos. Essa lastimável experiência do romancista alagoano foi registrada no livro Memorias do Cárcere. Segundo relato do cineasta Nelson Pereira dos Santos, que transformou em filme o livro em 1984, o velho Graça, como era conhecido o escritor, dividiu a prisão com 237 pessoas diferentes. A experiência da detenção começa ainda no Nordeste. O artista foi detido em delegacias e cadeias entre as cidades de Maceió e Recife. Como relata o realizador cinematográfico, a vivência do cárcere se intensifica no navio-prisão que levou Graciliano de Recife ao Rio onde, por fim, o autor de Vidas Secas é encarcerado na Colônia Correcional Dois Rios, na Ilha Grande, bem como na Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Como finaliza o cineasta: “Os presos, políticos ou comuns, são retirados do anonimato: os primeiros, resgatados da violência da tortura e do cárcere; os últimos, da miséria que antecedeu a dupla marginalidade — social e legal.”
Os donos do Morro, como são conhecidos os chefes do tráfico nas comunidades cariocas, não aprenderam somente tática de guerra com o treinamento intensivo patrocinado pelo Estado ditatorial. Esses chefes atuavam, de maneira geral, respondendo ao espaço deixado pela ausência do Estado. Por exemplo, compravam remédios para doentes, construíam áreas de lazer, reformavam ruas e vielas etecetera. Com o passar do tempo, com o acréscimo da violência e a disputa entre facções, os líderes passaram a morrer cada vez mais jovens. Não se pode deixar de lado o fato de que, no Rio de Janeiro, em relação à São Paulo, por exemplo, o craque ter se afirmado tardiamente.
Não é novidade para ninguém que essa droga tem alto teor de dependência e degeneração em seus viciados. Isso mexeu profundamente com a renovação das lideranças no tráfico, pois as crianças, antes utilizadas para fazer ‘aviões’ e assim se preparar na cadeia formativa de executivo do pó branco, passaram a depender cada vez mais do craque, pondo em risco a confiança de uma futura ascensão profissional. Com isso, a parte benevolente do aprendizado obtido nos presídios foi definhando ou perdendo importância, provocando com que, em algumas favelas, a comunidade tolerasse menos as atividades do tráfico.
O papel desempenhado pelo jogo do bicho é outro ingrediente importante para que possamos compreender melhor e para além das midiáticas (des)informações, os complexos e tristes episódios protagonizados pelo Rio de Janeiro nos últimos meses de 2010. Esse expediente sofreu, principalmente nas últimas décadas, grande perseguição do Estado e de seus aparelhos. Importantes figuras do jogo do bicho do Rio foram mortas, presas, aposentaram-se ou mudaram de atividade ou até de cidade.
O que a mídia batizou de milícia, é em parte a migração operada pelo declínio daquela operação. As milícias conseguiram misturar alguns ex-bicheiros, policiais na ativa, ex-policiais, líderes comunitários, políticos, traficantes, religiosos e mais outros tipos de empreendedores. Importante anotar que os milicianos atuam na distribuição de produtos e serviços nas comunidades: gás de cozinha, água mineral, internet banda larga, televisão a cabo e similares. Com a desculpa de que afugentam os traficantes, as milícias passaram a ocupar um importante espaço dantes exclusivo à manipulação e distribuição de drogas.
O Estado do Rio de Janeiro vivia com essa situação uma espécie de equilíbrio instável. Responder como esse acordo era costurado é uma tarefa que aqui não cabe. Vale a indicação do documentário “Fé e fúria”, que reflete sobre articulação das igrejas neopentecostais e os traficantes que, por sua vez, associam-se aos políticos comunitários – braços armados de políticos parlamentares de oficio – e emolduram os obstáculos para que as religiões de matriz africana possam se sustentar nas favelas.
O cotidiano carioca, anterior há 2010, indicava que havia um tipo de negociata como garantia de não acontecer ‘grandes’ problemas em áreas nobres da cidade (não sem contradições e sem se excluir as fatalidades acidentais). A crescente ocupação de algumas comunidades por parte de determinadas milícias, desequilibrou a lógica. Os traficantes começaram a reclamar sua parte no bolo. Como os reclames não foram nada cordiais e se deram em áreas nobres e de muita importância para a aparência da cidade que iria sediar uma olimpíada e uma final de copa do mundo, como túneis de alto fluxo de veículos, entre outros espaços reservado historicamente à elite do Rio, a negociata entrou na ordem do dia. O governo, precisando preservar seu Estado de direito, logo realimentou o desequilíbrio e lançou mão de todo um aparato de guerra para vencer o desigual confronto.
Não vou me deter aos detalhes da guerra urbana entre traficantes e polícia (mais polícia federal, marinha e exército), meu espaço é pequeno. Ademais, a mídia sensacionalista brasileira é afeiçoada em minúcias que geram iBoPe. No entanto, quero alertar para alguns ‘bem-intencionados equívocos’. Nem toda favela carioca é situada em morros. Entre a Vila Cruzeiro, que é em sua maioria de área plana, e o Morro do Alemão, ficam as comunidades Largo do Alto e Tenente Pimentel. Outra confusão presente nos noticiários diz respeito à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, conhecidas como UPPs. Apesar de serem elogiadas pela mídia mundial, não foi sua implantação que causou o desequilíbrio. Isso quer fazer pensar as pessoas que acreditam na esfera da polícia como campo para resolver o problema da violência urbana.
Interessante pensar no dilema de crianças que não recebem da sociedade que os criam as mínimas condições materiais de existência que, em sua maioria esmagadora, têm na pele a marca de serem descendentes de africanos. Em geral, esses negros meninos e essas meninas negras são divididos entre dois ardilosos caminhos para suas vidas. Objetivamente, suas aspirações de futuro giram entre seguir o caminho de seus mantenedores (dificilmente os pais biológicos) ou o sedutor emprego de gerenciar o tráfico. Obviamente que aqui não se exclui as honrosas, nomeáveis e conhecidas exceções. No primeiro ‘sonho’ eles encontram desemprego, baixos salários e jornadas de trabalho fatigantes, sem contar o tempo perdido nas conduções – quando estas existem –, entre outras incontáveis desestimulantes situações. Já o tráfico, acena com o ‘sonho’ sedutor de salários fartos; além da atividade ser desempenhada próximo de casa, não exigindo formação acadêmica. Por fim, ainda abre a possibilidade – sempre bem difícil – do enriquecimento precoce.
Enquanto o problema da favela for tratado utilizando as más informações de alguns de seus ex-moradores e de especialistas que a consideram um espaço confortável e que, portanto, precisa ser defendida como condição satisfatória para se morar, ela continuará gerando episódios como os que assistimos nos meses finais de 2010. Não pensem que a espetaculosa ação policial pôs fim ao problema. Ele não acabou! Talvez mude de cara e de local. Haja vista, como mostrou a história recente, que favelas existem aos montes e o terreno continua fertilizado para que as práticas desenvolvidas no Complexo do Alemão persistam, e evoluam e se espalhem para outros Estados.
Atualmente, de forma equivocada, o capitalismo periférico brasileiro em crise profunda, bem como seus muitos defensores espelhados pelo jornalismo e pelo mundo acadêmico, continua acreditando que essa questão é um problema a ser resolvido na esfera policial!
De todo modo, esses míopes intérpretes da miséria alheia, no conforto do Lugar de Fala ressignificam suas crenças mítico-religiosas preferindo acreditar que “Deus é justo e verdadeiro e antes de acabar as férias nosso Charles vai voltar. Paz, alegria geral. Todo morro vai sambar, antecipando o carnaval vai ter batucada, uma missa em ação de graças vai ter feijoada, whisky com cerveja e outras milongas mais.” (Jorge Bem).
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
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Resumo: O objetivo lançado neste pequeno livro é o de apresentar ensaios sobre filmes, a partir de um caráter introdutório e didático, tendo por base a relação com a sociedade e, mais especificamente, com o horizonte da emancipação humana. Aqui estão contidos 10 ensaios sobre cinema, que, mesmo contendo algumas temáticas diferentes, possui uma unidade cristalina: o debate sobre o humanismo e a emancipação humana.
Edições: 2016, impressa