26/02/2021
A vida biológica tem um fim, a de um ser humano também é finita. As pessoas morrem por acidente de trânsito, por violência doméstica ou urbana, por enfermidades diversas, por bala ou vício. Muitas, porém, morrem de fome!
A vida humana, embora alguns desatentos, ingênuos e ou mal-intencionados analistas considerem o contrário, é frágil. Sob o efeito da pandemia motivada pela Covid-19, a sensação de que se vive por um triz é bastante presente. Todas as pessoas, sem exceção, estão submetidas ao sofrimento da dor cotidiana. A perda é constante e diária. Perde-se agregados, amigos e parentes. As covas e incineradores contabilizam mortes como se conta qualquer espécie de números, índices, estatísticas etc.
Como nos lembra Homero, por meio do diálogo entre Príamo e Aquiles, onde o primeiro solicita o funeral do filho Heitor, morto em batalha contra o segundo, velar, cuidar e se despedir dos mortos é algo necessário para o processo de nascer, viver e perecer do humano. As festas mexicanas dedicadas aos finados também servem de exemplo, mas outros casos podem ser citados sem maiores dificuldades.
Nem a despedida dos nossos temos como garantir!
A pandemia, contudo, não é a causadora maior da atual crise porque passa o capitalismo contemporâneo. Esta crise, como sustenta Mészáros, é estrutural: encontra-se na estrutura do capital. Com essa constatação, não se pretende tergiversar a realidade. Ao contrário do modo como está escrito nos parágrafos anteriores, o estágio do pandemônio que já dura mais de um ano, mexe com muita força nas subjetividades de cada sujeito humano.
A força motriz do capital, do modo como desvelou Marx, é o lucro. A essência da vida humana, seu pleno desenvolvimento, entra em profunda contradição com a lógica capitalista. Ou seja, o princípio da humanização aparece ao capitalismo como um princípio da maior desumanidade. Melhor dizendo, como uma anti-humanidade.
Aqui é importante registrar que Marx, em O Capital, ao enfrentar os apologistas decadentes que representam a burguesia aclarou que os intelectuais da ordem tentavam, a todo custo, eliminar tal contradição. O pensador alemão destacou com lúcida nitidez as principais características do âmago dessa polêmica: “As contradições e antagonismos inseparáveis da utilização capitalista das máquinas não existem, porque não crescem da própria máquina, mas de sua utilização capitalista!”
Como realça Lukács em sua Grande Estética: “Trata-se aqui de uma contradição interna básica da sociedade capitalista; nela se expressa a peculiaridade específica desta formação, a saber, que ela é ao mesmo tempo – e de modo inseparável – a forma mais elevada de todas as sociedades de classe, na qual a produção e a ciência podem desenvolver ao máximo as possibilidades objetivas do desenvolvimento dadas aqui e sob ‘relações antagônicas de distribuição’, mas, ao mesmo tempo, é a última sociedade de classe, que produz seu próprio ‘coveiro’”.
O que nos interessa, nessa curta comunicação, é o modo como a ciência é utilizada pela apologia capitalista. Como entende o filósofo de Budapeste, é inseparável o avanço econômico da reação ideológica. Não pode existir de um lado os fundamentos objetivos do humanismo e de outro o lucro econômico. Lukács, no entanto, entende que esse dilema não é solucionável, em nenhum patamar, pelos limites idealistas decadentes da consciência burguesa.
A ideologia que dá linha na pipa de um desespero geral, associada a horrorosa crítica mecânica, é responsável por tal desesperação. Essa desanimada moldura acaba por produzir a defesa de que a tecnificação da alma fez Deus abandonar todos as pessoas. Disso brota a crença irracionalista de que a técnica, sob uma suposta neutralidade científica, lança uma potente tirania sobre a humanidade.
Como já bem o sabemos, a expressão do progresso econômico sob o capitalismo compreende apenas um caminho unilateral: o lucro. Essa unilateralidade, e no capitalismo não poderia ser diferente, realça determinada hostilidade sobre as pretensões realmente humanas que se arvoram indicar qualquer caminho fora do lucro.
Para além de expressões infelizes como o “ainda bem”, produzidas aos montes durante a pandemia, o momento pandêmico serve para mostrar que o capital procura retirar vantagem em qualquer que seja a situação. Independente que as covas e os incineradores estejam atuando, o que importa para o capitalismo é lucrar com a desgraça de milhões de pessoas. E apenas assim pode existir o lucro. Ou seja, no capitalismo, somente sobre a miséria da maioria pode haver luxo para poucos.
Pensemos, para exemplificar, na questão da fome!
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a produção mundial de alimentos, na atualidade, é capaz de saciar 12 bilhões de pessoas. Mesmo que o mundo tenha cerca de sete bilhões, quase um bilhão de seres humanos passa fome. Descontando, como de uma tacada mágica, o que a sociologia da hora, ressignificadamente, chama de insegurança alimentar. Como denuncia a Oxfam Brasil, cerca de 12 milhões de pessoas poderiam morrer de fome até o final de 2020. Para a instituição, esses números são maiores de que a quantidade de pessoas que podem vir a óbito pela Covid-19.
Tais elementos nos remete à reflexão de Josué de Castro: “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come.” É oneroso insistir que a falta de sono causa diversos problemas de saúde. A Organização Mundial de Saúde (OMS), entretanto, registra que os distúrbios do sono atingem quase a metade da população do planeta Terra.
O sentimento que se instala, não pode ser de outro modo, a não ser de desesperança!
O que se pode dizer, não obstante à constatação de que a vida está por um triz, é que o capitalismo precisa ser superado. Sem a superação do modo de produção capitalista resta, quando muito, acreditar em hipóteses político-ufanista ou religiosas-utópicas de que há uma vida melhor fora do mundo concreto.
Em tempo de conclusão, lembro-me da ficção cinematográfica que atende pelo nome de A morte pede carona. Mesmo que alguns expertos em cinematografia considerem o filme pífio, há de se destacar que ele foi realizado com um orçamento inferior às outras películas do gênero. Não me cabe afiançar ou desabonar a criação. Interessa mais, para fins destas considerações, destacar a sensação de que a morte está ao lado. Seja pela Covid-19, por uma atrocidade passional causada por um machista ciumento que não entende o isolamento social, por um latrocínio, overdose, violência policial, acidente de trânsito ou de trabalho… Ou mesmo por inanição alimentar.
Os versos da música gravada pelo grupo The Doors servem para o encerramento dessa pequena exposição. A escolha não se concentra na canção do rock californiano por seu poder realista de síntese, considerando que o pessimismo impregnado nesta música é comum as notas e as letras do rock composto a partir, sobretudo, de maio de 1968. A eleição da canção thedoordiana, porém, toma acento por ter sido usada como base para o roteiro do filme A morte pede carona.
Terminemos, então, com os seguintes versos:
Pegue-o pela mão
Faça-o entender
Que o mundo depende de você
Nossa vida nunca acabará […].
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Arte-Educação, Estética e Formação Humana”, organizado por Deribaldo Santos.
Resumo: Em vistas do atual momento por que passa a sociedade, todas as esferas da vida humana veem-se invadidas pela problemática de uma crise jamais vista no mundo. Mergulhada em uma problemática sem precedentes na história humana, denominada por Mészáros de Crise Estrutural do Capital, o modo de produção capitalista passa a procurar alternativas para atenuar problemas que são imanentes à própria estrutura do capital. Considerando a moldura dessa crise, o presente livro traz como objetivo anotar algumas críticas sobre a chamada arte-educação. A necessidade de apresentar uma crítica ao que se convencionou chamar de arte-educação assenta-se, principalmente, no fato de que a escola, destacadamente, pública de nível básico, assumiu acriticamente a junção entre a educação e a arte como uma necessidade inquestionável. Prova dessa assimilação acrítica é a forma como os Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte (PCNs-Arte) ganharam o espaço escolar, alastrando-se por todas as localidades do país, desde as regiões mais urbanizadas até as cidades mais distantes e interioranas. As notas críticas que aqui se expõem têm como principal intenção esclarecer, mesmo que de modo preliminar e sintético, alguns dos equívocos mais comuns cometidos, sem as devidas mediações, pelos seguidores dos pressupostos que unem o complexo educativo ao artístico.
Edições: 2020, impressa