NL 42 | Cérebros eletrônicos têm tudo, mas (ainda) não trabalham

Temos inteligência pra acabar com a violência, dizem
Cultivamos a beleza
Arte e filosofia
A modernidade agora vai durar pra sempre, dizem
Toda a tecnologia
Só pra criar fantasia
Deuses e ciência vão se unir na consciência, dizem
Vivermos em harmonia
Não será só utopia

Quem me dera
Não me preocupar
Quem me dera
Não sentir mais medo algum

(Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Dadi)

O debate contemporâneo sobre a tecnologia, de modo geral, aponta que esta categoria é analisada como sendo, de um lado, carregada de algum tipo de otimismo e, de outro, de certo pessimismo sobre a capacidade de controle humano sobre a técnica e sua área de reflexão. Autores considerados clássicos, a exemplo de Karl Popper, e outros nem tão badalos, como Friedhish Rapp, concordam com a importância da tecnologia para os dias atuais. Os dois, cada um a seu modo, seguindo a moda comum das análises universitárias atuais, apresentam em comum o feito de desconsiderarem a relação de dependência ontológica, autonomia relativa e reciprocidade dialética que a tecnologia guarda com o trabalho humano.

A intelectualidade burguesa, independente que sejam figurinhas carimbadas nos corredores acadêmicos ou mesmo que sejam lembrados apenas por necessidade pontual, aproximam-se acriticamente ao analisarem a realidade sem considerar o trabalho como elemento fundante da humanidade, logo como potência científica detentora da possibilidade de transformação do real.

Tal desconsideração cega, completamente, qualquer tentativa correta de analisar o problema da tecnologia para a vida humana, o que apenas pode alimentar as conhecidas fantasias do pensamento pós-moderno.

As publicações dos livros O advento da sociedade pós-industrial, de Daniel Bell, A Sociedade Informática: as consequências sociais na segunda revolução industrial, de Adan Scaff (1955) e A terceira onda, de Alvin Toffler (1997), com resguardo às diferenças, entram no debate sobre a tecnologia de modo que alimentam o vento dos moinhos das concepções alinhadas às fantasiosas formas de reflexão do pensamento pós-moderno.

Na sociedade pós-industrial, do primeiro autor, haveria um deslocamento econômico que iria da produção de bens para os serviços. Com isso, ocorreria uma nova distribuição ocupacional, em que uma suposta classe profissional e técnica predominaria sobre as demais. Para que essa fictícia sociedade pós-industrial se configure, no que se refere ao fundamento societal, o conhecimento e a informação precisariam assumir o posto que cabe ao trabalho.

A sociedade informática de Schaff, por seu turno, é bastante otimista diante dos avanços da tecnologia dita globalizada, que teria uma transcendente capacidade para dotar as pessoas de tempo livre, em que o conhecimento moveria a sociedade dispensando o trabalho manual e, consequentemente, os trabalhadores e trabalhadoras.

Já Toffler procura indicar que o metabolismo de uma sociedade deve ser procurado em analogia com o funcionamento de uma onda de mudanças. O que estaria ocorrendo, para este autor, não seria uma crise crônica e sim uma terceira onda cuja característica seria dada pela rapidez do desenvolvimento tecnológico que tudo abala. Essa suposta nova onda teria nascido no cenário que se ergue logo após a Segunda Guerra Mundial. Para Toffler, o aumento das comunicações entre povos distantes, propiciado pela difusão das novas tecnologias, sobretudo das comunicações, resultaria na alteração da base econômica da sociedade, influenciando a totalidade das relações sociais.

Para esse grupo de pesquisadores não é mais a produção material da existência que determina o desenvolvimento da sociedade; agora o que garante tal desenvolvimento é a produção das comunicações, das informações e dos serviços. Ou seja, o trabalho manual seria agora executado pelas máquinas.

Vejamos: a tecnologia, por uma parte, é encarada por elevado otimismo, por outra, é carregada de exagerado pessimismo.

Para navegar nessa ambivalência, parte-se, quase sempre, do ponto de vista subjetivo, procurando valorizar o seguinte fato: a evolução dos artefatos tecnológicos influencia a construção da ética, dos valores e dos sentimentos dos sujeitos. O pensamento pós-moderno, que prefere abordar a questão a partir dessa ilusória perspectiva, mas que representa o ponto de vista teórico majoritário nas salas de aula do século XXI, oscila entre esses dois extremos: a tecnologia é maléfica e, ao mesmo tempo, a única saída para salvar a humanidade da desgraça.

Álvaro Vieira Pinto, no livro O conceito de tecnologia, resguardando suas não poucas lacunas, entende que o primado da técnica e da tecnologia não deve ser endeusado, tampouco, repudiado.

Essas categorias precisam ser analisadas, criticamente, sobre bases filosóficas consistentes, de modo a situar seu papel no desenvolvimento histórico da humanidade. Sobre essas considerações é importante pontuar, com o autor, que a reflexão sobre a técnica apenas se torna objeto da filosofia quando aquela se separa de quem a executa. Isso ocorre por existir uma desvalorização, sobretudo no capitalismo, do trabalho manual em relação a um nível superior especializado das funções sociais.

Em geral, no chão do cotidiano, técnico é o trabalhador a quem se atribuem recursos intelectuais específicos, é aquele que vem nos socorrer quando algum dos aparelhos que permeiam a vida moderna, e que, geralmente, possuem fios e botões, para de funcionar.

Na realidade, como esclarece Vieira Pinto, isso significa que apelamos para especialistas conhecedores das ações específicas necessárias para recolocar o equipamento em seu perfeito estado de funcionalidade. Assim, esse trabalhador personifica o portador da técnica, a saber: “da mediação, representada pelos atos adequados, que deverão levar ao fim pretendido, à retomada do funcionamento normal do aparelho ou da máquina”, como escreve o autor.

Dessa forma, a técnica começa a se distanciar de sua gênese, pois, parafraseando o filósofo, deixa de ser um adjetivo enquanto meio para se atingir um fim e inicia sua caminhada em direção à substantivação.

Os demais erros metodológicos que a empurram para uma concepção fantasiosa, elevando-a à categoria como algo sobrenatural, que perde a relação dialética do ato com o agente operador da ação técnica, devem ser computados para as visões anti-históricas da realidade, as quais são impossibilitadas de perceber o vício de raciocínio, largamente divulgado pelos escritores impressionistas, espelhados, mecanicamente, na troca de um adjetivo por um substantivo.

Para Vieira Pinto, rigorosamente, para se definir técnica e tecnologia não se pode estudar a primeira sem posicioná-la no contexto fundamental e exato do seu lócus: a tecnologia. No tecido social, entretanto, paira sobre essas categorias várias definições que confundem suas adequadas categorizações.

De maneira geral, são quatro as definições mais comuns sobre a tecnologia. Inicialmente há a relação com a “arte”, que procura designar teorização, estudo sistemático, discussão científica da técnica, em que se absorve as noções das artes, como habilidades do fazer prático, ou seja, as profissões. Em seguida, ela surge como sinônimo da “charmosa” expressão americanizada, bastante recorrente entre nós: know how, ligada à coisa estrangeira, procurando transmitir a ideia de algo superior.

Depois, encontra-se a equivalência que procura juntar todas as técnicas disponíveis em uma dada sociedade, em uma fase histórica determinada. Finalmente, encontra-se o conceito de tecnologia associado ao de ideologia da técnica.

É sobre esse debate que as categorizações ingênuas ou mal-intencionadas do conceito de tecnologia deitam raízes no cenário de irracionalismo presente, com muita força, no seio da crise estrutural do capital.

Ao conceber a técnica como algo material, condicionada historicamente por seus produtores, tendo no trabalho humano a mediação original, compreende-se melhor que, por definição, todo ato humano é, em si, uma ação técnica. Haja vista que a pessoa humana quando se torna ser social produtora de si mesmo, constitui-se simultaneamente em ser técnico.

A técnica, como define Vieira Pinto, primeiramente é uma qualidade do ato material produtivo. Apenas no decorrer desse processo se transfere, cognoscitivamente, do ato ao agente; isto é, o sujeito humano que pratica atos técnicos, torna-se produtivo por ter em mira um fim bem determinado, que pode ou não se realizar. A técnica, portanto, consiste em respeitar as qualidades apresentadas pela matéria social/material. Ou seja, é preciso agir de acordo com as leis dos fenômenos objetivos. Ao se respeitar esse processo, quem trabalha adquire habilidades que formam seu conhecimento sobre o material que opera na realidade.

De modo abreviado, a tecnologia e a técnica não podem ser encaradas acriticamente com positividade extrema de um lado, nem, de outro, analisadas como as maiores causadoras dos males da sociedade contemporânea.

Ambas as visões, como apontado brevemente, encontram-se marcadas por equívocos, uma vez que, no momento atual de crise profunda por que passa o capital, as distorcidas compreensões sobre técnica e tecnologia contribuem para manter o Brasil, e os países pobres de maneira geral, na condição de partilhar apenas da periferia da produção material lograda pelo trabalho humano.

Essa partilha desigual e combinada, por sua dialética própria, funciona como um sistema de intertravamento à condição de distribuição desigual da riqueza produzida pela classe trabalhadora, especialmente àquela que sobrevive na periferia capitalista (lembremos dos lastimáveis milhões de miseráveis existentes hoje na América Latina).

No jogo proclamado como globalizado, os países centrais impõem à classe trabalhadora o consumo destrutivo-passivo dos artefatos e elementos tecnificados de toda ordem e espécie produzidos nos países de capitalismo central, produtores avançados de técnica e tecnologias. O que garante, em relação dialética, o direito “indestrutível” do grande capital de melhor abocanhar a divisão social, técnica e internacional do trabalho em condições, indiscutivelmente, superiores.

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