09/06/2021
Os desmandos de Bolsonaro
A fome voltou a crescer entre os brasileiros e o consumo de carne e de frutas no país tem caído e afetado uma grande parte da população. No final de 2020, foi realizada uma pesquisa pela Freie Universität Berlin em parceria com pesquisadores da UFMG e da UnB, que revelou que, durante a pandemia, mais precisamente entre os meses de agosto a dezembro, mais da metade dos lares brasileiros conviveram de alguma forma com a insegurança alimentar, isto é, não fizeram suas refeições em quantidade e qualidade adequadas. O consumo de alimentos tem sido puxado para baixo pelo altíssimo índice do desemprego no Brasil de hoje e a redução do auxílio emergencial, seguida da suspensão nos primeiros meses deste ano, decerto agravou essa situação.
Além disso, o Brasil avança em direção ao número de meio milhão de mortes em decorrência da Covid-19. Fora a conhecida conduta negacionista, anti-cientificista, tomada pelo presidente, seus filhos e seus subordinados que tem ajudado a intensificar o contágio, as mortes, e os demais efeitos da pandemia no país, a CPI da Covid tem revelado novos fatos sobre o papel negativo do governo Bolsonaro no que se refere à aquisição das vacinas. Ela trouxe à tona documentos e depoimentos que demonstram que o governo Bolsonaro entrou atrasado no consórcio Covax Facility que facilitava o acesso às vacinas, atrasou a negociação para a obtenção das vacinas da Pfizer e da Coronavac, e prejudicou o recebimento do IFA (ingrediente farmacêutico ativo) desta última pelo Butantan, com seu discurso anti-China. Tudo isso reduziu o acesso às vacinas e a velocidade da vacinação no país.
Como se não fosse o suficiente, durante o pior momento da pandemia, o presidente e seus apoiadores provocaram aglomerações no Rio de Janeiro, com desrespeito escancarado às medidas mais básicas de proteção contra à Covid. Em resposta, algumas centrais sindicais, movimentos sociais e partidos de esquerda decidiram convocar as manifestações realizadas no dia 29 de maio, penúltimo sábado. Dado o delicado momento da pandemia no país, surgiu, no seio da esquerda, o dilema acerca do risco-benefício de realizar as manifestações contra Bolsonaro. A partir deste dilema, surgiram distintas posições. Mesmo com o esforço de se diferenciarem das mobilizações pró-Bolsonaro, nem todos os partidos e organizações convocaram seus militantes oficialmente para participarem, mas apenas demonstraram seu apoio.
Uma coisa é certa: motivos os brasileiros têm de sobra! Mesmo no momento em que os leitos dos hospitais de algumas das capitais do país têm cerca de 90% de ocupação, para a grande maioria dos brasileiros, marchar contra Bolsonaro é uma necessidade.
“Apesar do erros do governo”, a grande burguesia brasileira está contente
Se o comportamento político-ideológico do governo Bolsonaro tem sido alvo de críticas de governadores e senadores de partidos da oposição, de grande parte da população, dos maiores jornais do país e da esquerda, a situação econômica não anda tão ruim para alguns setores do grande capital. Como disse um recente editorial de um dos maiores jornais do Brasil, “apesar dos erros do governo, as exportações do agronegócio e da indústria mineral mantêm superavitário o comércio de bens”. Podemos ler o seguinte: apesar da inabilidade política e das barbaridades ideológicas do governo, o agronegócio e a mineração andam bem, têm crescido e se recuperado, a ponto de garantir uma balança comercial favorável e a estabilidade da moeda do país, além de terem conseguido elevar o PIB (isto é, elevar o valor da produção de riquezas no país) no primeiro trimestre deste ano, superando as perdas durante o período da pandemia e as expectativas dos analistas.
Quer dizer: apesar de tudo, o governo Bolsonaro, não tem atrapalhado tanto assim o andamento da economia, suas palavras e ações não conseguiram prejudicar o capital nacional como um todo.
É preciso destacar que, quando se diz que as declarações e posições do governo não prejudicaram tanto o Brasil ou a economia brasileira, não devemos considerar de modo algum que essa recuperação da economia inclui a economia das famílias brasileiras. O orçamento familiar tem afundado, puxado pelo altíssimo índice do desemprego, e tem trazido, com a queda do consumo em geral e de alimentos, o aumento da insegurança alimentar e da fome como mostramos no início do texto, além de intensificar outros problemas sociais. Na sociedade em que vivemos, principalmente nos momentos de crise, a classe trabalhadora paga o pato, o capital não. A convivência entre o crescimento da riqueza produzida no país e as péssimas condições de vida da maioria dos trabalhadores é expressão dessa lei social.
Ainda que ideologicamente o governo Bolsonaro seja um problema, um poço de irracionalismo, economicamente as coisas tem andado bem para os setores do capital que não foram tão afetados pela crise nem pela pandemia. A expressão “apesar dos erros”, utilizada pelo jornal, parece nos revelar muita coisa. Transpondo as reflexões de Lukács feitas na Introdução de A Destruição da Razão para o Brasil de hoje, talvez não cometamos erro ao afirmar que Bolsonaro faz parte de um recuo estratégico da burguesa brasileira no campo da luta de classes; por vezes, a burguesia apoia figuras que representam um rebaixamento do nível político, filosófico e moral, como uma forma de recuo temporário, imposto pelas circunstâncias.
Bolsonaro se mostrou como a melhor opção da burguesia brasileira nas eleições de 2018 e até hoje, embora seja rechaçado por quase metade da população, parece estar atendendo às necessidades dos setores mais reacionários do grande capital no país.
Não é decisivo, para o capital, as características ou preferências pessoais do representante político. E se o representante político atrapalha as necessidades do capital, dar-se-á um jeito de trocá-lo. A classe burguesa sempre se acoplará ao que for necessário a sua sobrevivência, mesmo que isso signifique associar-se a alguém como nosso atual presidente. Sejam piores ou melhores que Bolsonaro as personalidades que estiverem no gerenciamento do Estado capitalista, elas irão de uma forma ou de outra servir às necessidades do capital. Trata-se de uma determinação do Estado capitalista que o indivíduo não pode subverter.
As manifestações do dia 29 de maio de 2021
Depois do apresentado acima, queremos tecer algumas considerações sobre as manifestações contrárias a Bolsonaro.
Elas buscam desgastar ainda mais a imagem do presidente, que já se encontra maculada por conta do momento atual do país; buscam demonstrar a força e a insatisfação coletiva nas ruas, e, assim, fortalecer e legitimar a CPI da Covid em curso, a qual, dentre outros objetivos, visa apurar as ações e omissões de Bolsonaro e de seu governo durante a pandemia. Além desses objetivos, Boulos deu duas declarações que revelam um pouco mais das motivações que impulsionaram os protestos contra Bolsonaro. Boulos faz parte da Frente Povo Sem Medo, uma das organizadoras das manifestações, e disse o seguinte: “derrotar o Bolsonaro é uma questão de saúde pública” e “não dá para olhar passivamente o Brasil sangrar até 2022, perdendo vidas à espera das eleições”.
Se observarmos a fala de Boulos junto as outras motivações, vemos que ou as eleições ou o impeachment se apresentam como solução ou esperança. Mas ambos na prática significam a mera troca do representante político, do gerente político do capital, e, portanto, pressupõem o Estado capitalista e todo o resto dessa “perversa existência terrestre” – como aponta Marx e Bürgers no segundo número da Nova Gazeta Renana. Boulos acerta em “não dá pra olhar passivamente o Brasil sangrar”, mas depois restringe as possibilidades da luta política ao impeachment e às eleições de 2022.
Além disso, o que chamam de o problema da saúde pública ou da fome não é o problema que tem afetado todas as classes trabalhadoras oprimidas ao longo da sociedade de classes, mas sim o problema enfrentado apenas na pandemia sob o governo Bolsonaro. Fizemos essa afirmação a partir da reflexão de Engels sobre o problema da moradia no início do seu artigo Como Proudhon resolve a questão da moradia. Para Engels, “o que hoje se entende por escassez de moradia é o peculiar agravamento das más condições de moradia dos trabalhadores […]. E a única razão pela qual essa escassez de moradias passou a ser tema frequente é que ela não se limitou à classe dos trabalhadores, mas acabou atingindo também a pequena burguesia”. Isso acontece também com o problema da fome, da educação, da saúde pública etc., no Brasil.
No limite, o que as manifestações também colocam em xeque é apenas o peculiar agravamento das condições da saúde e da alimentação dos brasileiros durante a crise econômica e a crise sanitária, gerenciada sob o governo Bolsonaro.
Os brasileiros têm todos os motivos do mundo para se revoltarem coletivamente contra o atual estado de coisas. Porém, marchar apenas contra a bizarra figura que dirige politicamente nosso país é pouco, não é o suficiente; marchar apenas contra a piora das condições de alimentação, saúde, trabalho, etc. durante um governo ou outro, não é o suficiente. Quando a humanidade precisa e pode se livrar do jugo do capital e recuperar a toda a autonomia que lhe foi tomada, quando pode destruir a sociedade de classes, a propriedade privada, o patriarcado, o Estado que usurpa seu poder de decisão, marchar contra Bolsonaro é pouco. Quando a destruição do planeta e da humanidade ou a barbárie parecem estar cada vez mais próximas, marchar contra Bolsonaro é pouco; e ajudar a construir a teoria e a prática revolucionária, urgente.
Para as manifestações contra Bolsonaro, podemos alertar sobre a necessidade de colocar a revolução social no horizonte e pensar objetivos distintos para a luta política que ultrapassem a dupla impeachment e eleições.
Bolsonaro tem feito o que pode para cumprir direitinho seu papel de genocida – muitas vezes não tão bem, como aponta a imprensa burguesa – mas, o principal genocida – o pai de todos eles – não pode continuar de fora da análise, nem do combate político!!! O capital, esse poder autônomo desenvolvido ao longo da história da humanidade e que a coloca sob seus pés, faz com que o trabalho vivo, o conjunto de trabalhadores, se converta em mero meio para a acumulação de trabalho morto, o qual, sob a forma social do capital, escraviza cotidianamente os seres humanos, transformando-os em resíduos do próprio mundo que constroem. Sob a influência desse poder, toda a dinâmica social se orienta para a resolução das necessidades do capital e não das pessoas.
Ignorar o poder dessa força social que é o capital e não compreender a sua forte influência sobre o Estado capitalista nos faz orientar nossas energias e nossas vidas para soluções ineficazes para a classe trabalhadora e para o proletariado – como são o impeachment e as eleições. Por isso, é da maior importância identificar nosso principal inimigo. Por isso, marchar contra Bolsonaro ainda não é o bastante.
Falando nisso…
Gostaríamos de indicar o texto de combate ” O governo é contra os trabalhadores!”, escrito por Milena Santos.
Resumo: Com o capitalismo, os problemas da pobreza, da segurança social, da saúde, da educação, da habitação, do meio ambiente etc. se tornam muito mais graves.Nem todos estes problemas tiveram início no capi- talismo, mas todos eles se agravaram enormemente com ele. Muitos consideram o capitalismo o sistema “mais adequado” para garantir a “ordem e o progresso hu- mano”. Ou seja, a sociedade perfeita. Mas, se fosse “perfeita”, não existiriam todos estes problemas. Então, criam-se desculpas para justificar a existên- cia desses problemas. Dizem que eles “sempre existi- ram e sempre existirão”. Ou apelam para Deus: “Istoé assim porque Deus quer”. Há ainda quem justifique o capitalismo dizendo que o ser humano é incorrigi- velmente egoísta. Que a causa de tanta miséria não é o capitalismo, mas nós próprios com nosso egoísmo. Que não há sistema econômico ou político que corrija isso.
Edições: 2018