Coletivo Veredas Newsletter NL 33 | Sobre ciência, amizades, natal, músicas e lágrimas

NL 33 | Sobre ciência, amizades, natal, músicas e lágrimas

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25/12/2021

Era para iniciar esta crônica falando da chatice natalina. Mas não posso iniciá-la sem antes lastimar a ainda aguda presença da Pandemia do novo Coronavírus que assolou o mundo a partir de 2019. Os efeitos devastadores na produção objetiva da vida em virtude da Covid 19, trazem como consequência dialética, efeitos terríveis nas subjetividades humanas.
 
Logo após o carnaval de 2020, as pessoas viventes no Brasil foram orientadas a um tipo distinto de convivência social. A alguns, durante significativo intervalo de tempo, foi imposto o denominado trabalho doméstico. Nem todas as pessoas, possivelmente a maioria da população, lamentavelmente, têm a garantia do que comer ao mínimo três refeições durante o dia. Isso, entre outros fatores, dificultou o fechamento total das cidades, ou seja, o confinamento de trabalhadoras e trabalhadores dentro de casa, fenômeno denominado pelos especialistas de Lockdown.
 
A vida virou um terror!
 
Os noticiários se locupletavam em expor a fartura de corpos amontoados nas ruas. Faltaram cemitérios, covas e profissionais suficientes para completar os enterros, cremações… Como solução, optou-se por congelar corpos, entre outras soluções bem exemplificadas pela gestão da miséria capitalista.
 
As muitas pessoas que perderam amigos e parentes: pais, mães, irmãos etc, não podiam, ao menos, enterrar ou incinerar seus mortos. Ressignificou-se, pelo lado pejorativo do termo – o único que a expressão pode conceder –, a dor de Antígona, de Príamo, dentre tantas pessoas impedidas da despedida de quem partiu vítima da pandemia. Podia-se, no limite das alternativas dessa gestão da miséria, olhar através de um vidro, e por pouco tempo, os corpos das pessoas mortas.
 
A ciência autêntica, desacreditada pelos receios capitalistas, que contemporaneamente atende pela alcunha de negacionismo, não garantia a vacinação em tempo satisfatório para que a vida fosse retomada. A cientificidade capitalista, até o presente, cerca de dois anos após o surgimento do vírus, não conseguiu vacinar, sequer cinco por cento da população do continente africano. Isto, para ficarmos com apenas um exemplo dessa malfadada gestão capitalista que, no limite, apenas consegue gerir de um lado a miséria e do outro o lucro advindo com a desgraça. Somente no Brasil, a doença já vitimou mais 600 mil vidas.
 
Não gosto do natal! Sei que já disse isso em outras oportunidades. Mas o deste ano possui um gosto ainda pior!
 
Acho que todo fim de ano vou dizer essa frase. Os motivos são diversos. Para além dos 600 mil óbitos, basta aludir sobre a chatice das músicas natalinas e a pieguice das programações televisivas.
 
Um fato subjetivo, creio, tem maior relevância entre os demais. Nessa época fico muito reflexivo: a saudade de algumas pessoas queridas que não habitam mais essa vida é aguçada, sobretudo aquelas que partiram vítimas da Pandemia. Essas lembranças facilmente me levam às lágrimas. Tal reflexão também cobra de mim uma revisão crítica sobre os resultados do ano. Olhando para trás e contabilizando os artigos e livros publicados, o período deveria ser considerado proveitoso. Não é isso o que acontece, no entanto.
 
Depois que a ciência virou profissão, sou menos alegre, meu humor é menor e passo menos tempo com meus amigos decádicos (cuja amizade já dura mais de vinte anos). São debates, palestras, mesas redondas (e às vezes quadradas), lera, lera e mais leras.  O cotidiano acadêmico não me faz um ser humano melhor. A ciência, quando levada a sério, inevitavelmente, revela o que a aparência por si só não tem como mostrar; tais revelações, dependendo de seu grau de generalidade, entre outros elementos, nem sempre permitem ao cientista uma atitude imediatamente interventora. Para uma pessoa como eu, militante por formação, essa relativa imobilidade também aparece como tristeza nessa hora de reflexão.      
 
Desde muito pequeno que tenho dificuldade de concentração. Dizem os que me criaram que é castigo; justificam alegando que a culpa é de minha desobediência na infância e na adolescência. Isso levado a cabo, apresenta-se como mais um obstáculo ao fazer científico.
 
Acabei convivendo com esse problema, que a medicina diagnosticou pelo nome de dixlexia, contraditoriamente com a ajuda da música.
 
Música?
 
Isso mesmo!
 
No começo de minha atividade acadêmica, que se deu, em comparação com o padrão geral, tardiamente, não conseguia ouvir música quando trabalhava. Ela tangia pra longe minha pouca concentração!
 
Um acidente precisa ser narrado: meu equipamento de som, por um desses desagradáveis acasos, pifou. Soma-se a isso o seguinte fato: o cotidiano permeado pela mobilidade tecnológica, quase que acabou com os convencionais reciveres e seus similares. Resultado, não concertei meu histórico equipamento de som. Deixei pra lá, passei a ouvir música apenas quando estava dirigindo e mesmo assim, com apoio dos dispositivos móveis. Assim não perdia a concentração no trabalho.
 
Muito pouco, convenhamos, para quem considera a música sua maior fonte de catarse.  
 
Outros elementos, felizmente, entram na conta e quando os relaciono na inevitável retrospectiva, um ar de regozijo toma conta de mim. De todo modo, eu precisava voltar a ouvir música com frequência. Decidi adquirir um novo equipamento de som, comprei o que coube no limite máximo de minhas possibilidades financeiras, financiei-o em um monte de vezes. O danado é do bom mesmo! Som pra todo lado: caixas na frente, atrás, nas laterais, em cima e em baixo e por aí vai.
 
Dei de ombros para as novas possibilidades que o celular permite.
 
Voltar a ouvir música trabalhando foi uma das principais conquistas do ano, e ainda mais quando constato que, a duras penas, faço isso e não perco a necessária concentração para a produção científica.
 
O rádio, de quebra, ajuda-me com a gerência do tempo. Haja vista que as programações me informam a hora de começar, terminar, comer, merendar etc.
 
Daí pra frente, algumas constatações que se materializam através da música devem ser relacionadas.
 
Sempre tive uma implicância meio sem fundamento com o Jazz, acho que por mero bairrismo nacionalista; ‘pinima’ maior eu tinha com um de seus maiores expoentes, o trompetista Miles Davis. Acho esse músico muito boçal, espaçoso e confiado. Até que fui à casa do poeta caririense Geraldo Basílio (minha amizade com Geraldo começou em 1984) entregar-lhe um livro que escrevi; ele estava a ouvir um disco de jazz desses que se compra em bancas de jornal encartados com livretos que contam um pouco da história dos músicos – também coisa do passado –, emprestou-me exatamente o volume dedicado a Davis. Na biografia do instrumentista estadunidense, nenhuma surpresa: confirmação absoluta de sua pompa e exageradíssima autoestima. Mas quando botei o CD pra tocar – ainda hoje escuto –, toda e qualquer implicância que eu tinha com o estilo e com o interprete ruíram por água abaixo. A interpretação da Faixa 14, Autumn leaves, (de autoria de Joseph Kosma e Jacques Prévert) para citar apenas essa, é uma coisa de louco, dura mais de dez minutos de pura idílica emoção, o trompete do músico tira você do chão, parece um entorpecente. Por isso, o músico é considerado O CARA do jazz.
 
O ano que vem, apesar da história só admitir navegar em seu leito o que é inédito, deverei estar despedindo-me de mais um ano com bronca do natal, lembranças dos amigos e das músicas que me desconcentram o trabalho e me fazem secar os olhos.
 
Ao terminar esta crônica, infelizmente, sou obrigado a escrever que dificilmente teremos uma saída inédita para as assombrosas dificuldades espalhadas pelo cotidiano da sociedade contemporânea. Os efeitos da Pandemia ainda estão no ar e o natal continuará com sua chatice.
 
Amizades decádicas, canções e lágrimas, portanto, serão o meu refúgio de conforto para quando a ciência insistir em gritar: “a saída está tão longe!”.  

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