22/02/2022
As organizações revolucionárias em geral passam por uma perda constante de militantes, ainda que de modo diverso em cada caso. Seus militantes estão, simplesmente, deixando de militar. A depressão, a “desesperança”, a tristeza – tudo isso potencializado pela crise que gera um enorme desemprego – são as faces mais imediatas e superficiais (reais, de modo algum, falsas) dos fatores que dissolvem por dentro os indivíduos batalhadores, revolucionários. Esse é um fenômeno generalizado. Já era grave antes da pandemia. Com ela, potencializou-se. O que está ocorrendo? Por que a decomposição do mundo burguês – que aproxima a revolução como nunca antes – é também acompanhada pela decomposição dos coletivos revolucionários e pela desestruturação da personalidade de muitos lutadores? Por que o aguçamento da “crise estrutural”, ao invés de impulsionar a militância, a desagrega?
Antes de entrarmos na questão, vale lembrar que esse não é um fenômeno novo. Para lembrar dois casos clássicos porque muito típicos: a decomposição pessoal da nobreza francesa e russa antes das respectivas revoluções; a decomposição “moral” da sociedade francesa e russa nos anos que precederam os 1789 e 1917; a “desesperança” dos intelectuais quando da “Belle Époche”. Os casos são muitos na história! Só para citar mais alguns: o desespero de Platão ante a dissolução moral e política do cidadão da polis após os anos de Péricles; o protesto quase enfurecido de Agostinho contra a decadência moral e religiosa dos seus semelhantes em plena crise do Império Romano; a bem-humorada condenação por Erasmo de Rotterdam da decadente personalidade do sábio medieval em uma Europa crescentemente burguesa…
Sem qualquer mecanicismo, sem desconsiderar que há particularidades em cada caso de tal modo que a “lei geral” nunca se desdobra da mesma forma, a decadência final de um modo de produção é também a decadência final das individualidades que sobre ele se fundaram. Tal como o indivíduo típico do modo de produção escravista (com sua concepção de mundo, seus valores, seu conhecimento de si próprio e do universo, com seus gostos e preferências pessoais etc.) teve de ser destruído para dar lugar ao servo e nobre medievais (com sua concepção de mundo, valores, seu conhecimento de si próprio e do universo, com seus gostos e preferências pessoais que são feudais e não mais escravistas), também o ser humano burguês está sendo destruído para dar lugar ao futuro — quer seja ele a destruição da humanidade ao transformar o planeta em algo inóspito para os humanos, quer seja o futuro a transição ao modo de produção comunista (bem entendido: fundado no trabalho associado e, por isso, sem Estado, família monogâmica, propriedade privada e classes sociais).
A dissolução das individualidades dos revolucionários é, em nossos dias, um caso particular da dissolução mais universal da individualidade burguesa.
Por que isso é assim?
Por que o fim de um modo de produção é também o desaparecimento de sua individualidade típica?
Há uma razão mais geral, mais universal, que é a predominante e, talvez, por isso mais fácil de ser compreendida: entre os modos de produção se interpõem um salto, pois a modalidade do trabalho que funda cada um deles (o trabalho do escravo que funda o escravismo, o do servo que funda o feudalismo, o do proletário que funda o capitalismo etc.) exibem diferenças essenciais entre si. De tal modo que, tanto não podem (tendencialmente, no longo prazo) conviver no mesmo espaço e no mesmo tempo, como ainda só podem se desenvolver plenamente pelo desaparecimento da modalidade de trabalho de cuja superação brotaram.
Quando observamos a reprodução dos indivíduos, há algo similar. O escravo é tão incapaz de incorporar em suas ações cotidianas o que é possível e necessário na sociedade feudal, quanto o servo de sobreviver na sociabilidade escravista. Um nobre feudal seria incapaz de sobreviver entre a nobreza romana, e vice-versa. Cada sociabilidade requer uma individualidade a ela apropriada, capaz de realizar no cotidiano as ações imprescindíveis à reprodução de si próprio e da sociedade em que vive, já que não se pode viver sem sociedade. É por isso que a crise estrutural do capital dos nossos dias é também a “crise estrutural” das nossas individualidades burguesas.
Mas, ainda uma vez, por que é assim?
Como a reprodução do ser social é, ao mesmo tempo (ainda que com desigualdades e contradições que podem se elevar ao antagonismo) a reprodução da totalidade social e de cada um de seus indivíduos, tal reprodução é marcada por dois traços essenciais.
O primeiro: a totalidade social é o processo histórico que sintetiza em tendências históricas universais os atos singulares dos indivíduos singulares (concretos, historicamente determinados). Como a totalidade é sempre mais do que a soma das partes, os indivíduos se confrontam com ela como se ela fosse uma dimensão já dada, que não é o resultado de suas ações e que, por isso, seria também impossível de ser alterada pelos seus atos. A generalizada percepção cotidiana de que não há nada a se fazer frente à crise do capital, que nos oprime a todos como um deus onipotente, tem aqui uma de suas bases mais poderosas. De fato, nós humanos herdamos das gerações passadas tendências histórico-universais que nem foram criadas por nós no aqui e agora do presente, nem podem ser alteradas pelos nossos atos individuais isoladamente. Fazemos história, como dizia Marx, em circunstâncias que não escolhemos, que nos oprimem feito “pesadelos”.
O segundo traço essencial da reprodução social é que a síntese em totalidade dos atos singulares apenas pode ocorrer se os indivíduos agirem na vida cotidiana. Ou seja, o elemento que compõe a totalidade é a ação humana singular – e, portanto, a reprodução, alteração ou superação de tendências histórico-universais se relacionam a como agimos no dia a dia.
Abre-se aqui um movimento dialético intenso, contraditório sempre, entre a reprodução da totalidade social e os atos singulares dos humanos. Nesta relação, exceto em momentos muito especiais (como durante os processos revolucionários), o momento predominante cabe às tendências histórico-universais. Contudo, este momento predominante atua pela mediação da síntese dos atos singulares em totalidade, portanto ele predomina sobre os “períodos de consequência” produzidos pelos atos singulares os quais, por esse meio, interferem também no desdobramento do universal. Portanto, a totalidade nunca é a única potência nem determina totalmente a história. Parece um paradoxo, mas não é não. No movimento histórico concreto, objetivo, isto é claramente visível. Pensemos na ação de um Robespierre ou Danton na Revolução Francesa ou de um Lenin e Trotsky nos anos de 1917 a 1921. Ou, para evidenciar o peso das tendências histórico-universais, pensemos na crise de 1929 ou de 2008, crises nas quais a inevitabilidade das mesmas foi dada pela reprodução do capital no seu todo, mas cujo início, desdobramento e “desfecho” trouxeram as marcas das medidas econômicas adotadas pelas personificações as mais diversas do capital e, no plano mais geral, pela luta de classes.
Ou seja, são as tendências históricas universais que, predominantemente, fazem com que as individualidades tenham que se desenvolver para dar conta das novas possibilidades e necessidades que vão sendo produzidas e superadas pela evolução humana. Assim, a transição de um modo de produção a outro é também a transição de uma individualidade à outra – com todas as contradições e desigualdades que sempre existem nestes momentos transitórios.
Nada disso altera o fato, claro está, de que cada indivíduo é uma singularidade. O que significa que possui uma substância sua peculiar, uma história própria e um campo de possibilidades seu próprio para se relacionar com as necessidades e possibilidades que se fazem presentes em sua vida. Pois bem, a singularidade da essência de cada pessoa é dada pela qualidade de sua conexão com a humanidade e, tal essência é reproduzida cotidianamente na medida em que o indivíduo age na vida cotidiana.
Expliquemos melhor essa coisa da essência
O que nós fazemos (não a intensão com que fazemos), as consequências reais, objetivas dos nossos atos (não o que nós gostaríamos que elas fossem), possuem um efeito de retorno decisivo sobre o que nós somos, sobre nossa personalidade, sobre nossa subjetividade.
A razão última deste fato é simples de ser divisada: ao agirmos sobre o real, produzimos alterações na situação concreta em que nos encontramos. Tais alterações nos forçam a novas ações sobre as consequências por nós geradas. Cada um de nossos atos cria possibilidades e necessidades que, com peso variável, mas sempre presente, interferem no que faremos em seguida. Desdobra-se, assim, ao longo das nossas vidas, uma continuidade que vai compondo a qualidade essencial do que individualmente somos. Esta continuidade vai constituindo a qualidade da nossa relação pessoal com a humanidade (com o gênero humano) e, por este meio, construímos nossa essência individual. Esta essência nada mais é, repetimos, do que a qualidade do conjunto das conexões que estabelecemos com o gênero humano. As nossas intenções contam, mas são as consequências objetivas de nossos atos que predominam na moldagem das nossas essências.
Tomemos um exemplo: se vivemos em uma sociedade que é uma “imensa coleção de mercadorias”, necessariamente no nosso dia a dia nossas ações se pautam pela troca de mercadorias. Nossos valores, o que “dá certo ou errado”, nossa realização pessoal, se articulam imediatamente com nossa capacidade de acumular mercadorias: nossa razão de viver é o dinheiro. Nós nos tornamos, assim, essencialmente “guardiões”, serviçais, das mercadorias. Isto é o significado mais íntimo de ser burguês. Um indivíduo burguês só pode existir em uma sociedade reduzida a uma “imensa coleção de mercadorias”. Nem pensar em algo assim nos modos de produção anteriores! Uma sociabilidade de mercadorias nos torna burgueses. Sem qualquer apelação possível.
E a crise das organizações revolucionárias?
Todos nós sabemos o valor das mercadorias, sabemos manejar o dinheiro na vida cotidiana e ficamos felizes se nossa conta bancária sobe e deprimidos se ela cai. Somos capazes de amar “apenas” monogamicamente, agimos como se não houvesse civilização sem Estado e como se a política fosse algo tão natural e inevitável quanto o Sol nascer a leste. Seríamos, em geral, mais felizes se houvesse bons empregos para todos nós, se a comida fosse barata para que todos pudessem comprá-la e se todos pudessem ter financiamentos para moradias dignas e confortáveis. Em suma, seríamos mais felizes se a sociedade burguesa funcionasse! Essa é nossa ilusão cotidiana!
Para revolucionários, não é necessário argumentar depois de Marx e Engels: a sociedade burguesa é incapaz de outra coisa senão acumular riqueza em um polo e misérias no outro. Essa “lei geral da acumulação do capital” se expressa hoje com uma evidência absurda. Quanto melhor funcionar a sociedade burguesa, maior será a concentração da riqueza, maior será a desumanidade e ainda mais desumanos, pois mais alienados, seremos todos nós. Quanto melhor funcionar a sociedade burguesa, mais próximo estaremos de destruirmos a própria humanidade…
E, todavia, quando a sociedade burguesa se dissolve a olhos vistos e, como nunca antes, a revolução se torna uma necessidade tangível, neste momento para o qual os revolucionários se prepararam por muitas décadas e no qual finalmente, no dia a dia, a história dá toda a razão aos revolucionários… nesse momento muitas indivíduos revolucionários, batalhadores, entram em um processo de desagregação!
Parece um paradoxo: agora que a crise se aproxima e os revolucionários possuem possibilidades inéditas para atuar, é então que muitos entram em depressão, tristeza, “desesperança” e tudo o mais… e se “desmilitizam”. Contudo, examinado mais de perto, este fenômeno não tem nada de paradoxal. A putrefação da sociedade burguesa é também a morte do que temos de burguês em cada um de nós. Os elementos da nossa essência individual inevitavelmente burgueses entram em sua “crise estrutural”, tal como o modo de produção no seu todo. Parte do que somos, enquanto pessoas, está em “desajuste” com o mundo — tal como o capital está em “desajuste” com o humano.
A crise das individualidades possui, claro, uma dimensão individual. Em larga medida, também afetiva. Mas não se trata, na sua essência, de um “desajuste” ou “infelicidade” que possam ser superados individualisticamente ou com química: é necessário algo muito distinto! É preciso um “reajuste” da essência individual que promova uma nova conexão com o mundo burguês e que faça da crise deste mundo um enorme campo de possibilidades para a ação coletiva. Ou seja, é preciso uma inserção no cotidiano que possa tirar aproveito de todas as possibilidades revolucionárias abertas pela decomposição do mundo burguês. Apenas indivíduos que se confrontem com a essência desumana deste mundo podem ter uma vida essencialmente mais humana. Enquanto não exploda a crise revolucionária, só assim a vida poderá ter razão, só assim será possível uma existência menos individualista e alienada.
É também aqui que muitas organizações estão sendo ultrapassadas pela história. Surgidas no período contrarrevolucionário mais longo da história (a última grande revolução foi a chinesa, que terminou em 1949!), são organizações deformadas pela luta defensiva, reformista e local. Adaptadas e moldadas pelo “economicismo” (Lenin, de O que fazer?), são incapazes de organizar o ataque ao capital e, correlativamente, são incapazes de oferecer uma militância que possibilita uma articulação revolucionária de seus membros com o gênero humano. Ao enxergarem no presente apenas o “mal” (Bolsonaro) versus o “bem” (Lula), ao reduzirem suas armas às eleições, não podem oferecer aos indivíduos senão mais da mesma crescente desumanidade.
É quase patético, se não fosse trágico, assistir às discussões e embates no interior do campo petista (que inclui, claro, o PSOL, o PCB, o PC do B, o PCO etc.): o horizonte é de tal modo burguês que aquilo que se disputa nada mais é que pequenas variações do neoliberalismo em curso. O Estado se dissolve, a política se torna cada vez mais a reposição do velho, o mercado não mais absorve a força de trabalho que vai surgindo, a educação educa cada vez menos e a saúde é cada vez mais meramente uma extensão do complexo médico-hospitalar… mesmo amar se torna cada vez mais difícil… Dissolvem-se no ar todas as ilusórias promessas de que, pelas mediações da sociedade burguesa (quer seja pelo Estado, quer seja pela política, quer seja através de uma regulamentação “racional” do mercado, quer seja pela educação no “sentido humano” etc. etc.), chegaremos a uma “sociedade justa”. A concepção reformista apenas pode evidenciar a sua ineficácia e o militante ou se “desmilitiza” ou cai no praticismo idiotizador. Tal como o reformismo é uma via interditada pela história, a militância reformista, para existir, se reduz à miséria da política burguesa. Apoiar Boulos para forçar o PT à “esquerda”? Seria patético, não fosse trágico.
Há uma certa paralisia, se não estiver equivocado, nas organizações revolucionárias (aquelas não reformistas, não do campo petista) ao confrontar este fenômeno. O Coletivo Veredas incluso. Constata-se o efeito deletério da pandemia, joga-se nas costas do Covid a responsabilidade pela “desmilitância” dos militantes. Contudo, isto é apenas parcialmente verdadeiro: o que precisamos é de uma ação coletiva que, não mais individualisticamente, eleve o nível da conexão dos revolucionários com a história da humanidade. Uma ação que saia do terreno das ilusões e do idealismo para o solo concreto em que nos encontramos: há que se destruir o capital, nada mais, nada menos. Esta a única alternativa aberta à humanidade (aparte sua autodestruição), por isso a única alternativa que pode tornar a militância uma ação “plena de sentido”. Hoje – isso em parte é a riqueza humana de nossos dias – não há mais lugar para panos quentes e meios-termos: teremos que ser autenticamente revolucionários ou não seremos nada mais do que burgueses a caminho da extinção!
Há muito o que fazer e há mais ainda o que se viver. Perdidos na nossa dor individual, isolados, apenas podemos lamentar (reformisticamente, até) a morte do burguês que somos. A “solução”, neste caso, é como a cenoura para o burro: inalcançável. Drogas e tratamentos individuais não podem senão prolongar a crise individualisticamente tratada. Juntos, coletivamente, preparar o carnaval para quando ele se dignar a chegar, é o que nos possibilitará enfrentar com sucesso (ainda que em parte, mas uma parte real) a dor da inexorável despedida dos burgueses que somos todos.
Este, a meu ver, o problema decisivo da “desmilitantização” dos nossos lutadores! Coletivo Veredas incluso.