A eleição de Lula no ano passado, em 2022, foi saldada por muitos como a vitória da democracia contra o fascismo. Os jornais da grande imprensa, burgueses de estirpe, manifestaram esperança de que os dias de Bolsonaro fossem passado — para não mais retornar. Tudo jogo de cena: nem Bolsonaro é fascista, nem Lula é o que dizem ele ser!
Não foi pouco, o que fez Bolsonaro, para “merecer tanto”. Os horrores por ele colocados em prática durante a pandemia do Covid foi, de fato, dos horrores, um apenas pontual. Por mais horrendo que tenham sido os episódios da não-compra de vacinas, do incentivo às aglomerações, do genocídio em Manaus pela falta de infraestrutura (por duas vezes!), dos mais de 700 mil mortos; por mais escandalosos que tenham sido as queimadas na Amazônia, o massacre dos indígenas e suas “políticas educacionais”; por mais destruidor da ciência e da educação que tenha conseguido ser o seu governo; por mais escandalosas que tenha sido a nova modalidade de corrupção, puro e direto roubo, como as “rachadinhas” e as joias do Estado vendidas no Brasil e no exterior; por mais antidemocráticos que tenham sido suas várias tentativas de golpe de Estado – sua verdadeira obra, herança legada ao futuro, foi o restabelecimento do estamento político-burocrático após a ofensiva do grande capital, por meio da Lava-Jato. Sua mais impressionante realização foi a volta ao poder de um estamento-político burocrático que agora controla, como nunca, o Orçamento Federal e as duas casas do Congresso: aqui está o verdadeiro feito de Bolsonaro.
A debilidade histórica da burguesia brasileira – nascida, gestada e nutrida à sombra do imperialismo – a torna mais intensamente dependente do Estado do que em outros países. Esta dependência também se explicita, nestes anos em que a classe operária e os trabalhadores em geral não estão em uma ofensiva contra o capital, em um poder hipertrofiado dos políticos, burocratas, juízes, militares, etc. E, correspondentemente, na dependência hipertrofiada da burguesia para com os investimentos e verbas estatais. Este peso do Estado na vida social possibilita, não sem conflitos e não sem disputas cotidianas, aos políticos e burocratas se apoderarem de uma parcela “excessiva” (para a reprodução “saudável” do capital) da riqueza produzida pelo proletariado. Uma das tarefas decisivas de todos os governos, desde a democratização, tem sido articular com o estamento político-burocrático uma convivência que torne possível governar o país e, ao mesmo tempo, que incremente o poder e o enriquecimento dos políticos e burocratas de todas as ordens.
Foi assim durante a “privataria” (privatização + pirataria) dos anos de FHC. Seu vice, Marco Maciel, era representante das oligarquias nordestinas e homem chave no estamento político-burocrático de então. Depois veio Lula e Dilma, com o “mecanismo” que Malu Gaspar, em um livro-reportagem imperdível (“A organização”), descreveu em detalhes. Uma roubalheira sem par!
Contudo, com uma enorme novidade. Tanto do lado do capital, quanto do lado do estamento político-burocrático, houve uma “racionalização”, uma “padronização” até então desconhecidas. No modus operandi dos “agentes públicos” – desde a Petrobrás até a agência da Caixa Econômica do município mais isolado, desde o Supremo até o funcionário da Prefeitura mais modesta — as taxas de propinas e as modalidades de corrupção passaram a ser padronizadas. Marcelo Odebrecht sabia quanto pagaria de corrupção através do seu Departamento de Operações Estruturadas para ter acesso a uma obra, a um financiamento do BNDES ou para ter uma legislação de seu interesse aprovada no Congresso. Lula sabia quanto podia receber dos empresários ao promover uma Copa do Mundo ou ao aprovar o projeto da Usina Hidroelétrica de Belo Monte. Eduardo Cunha sabia que podia contar com uma mesada de cinco milhões enquanto estivesse preso. E assim por diante.
Por fim, na “sublevação eleitoral” (expressão do Estadão) que foram as eleições de 2018, entrou em cena Bolsonaro. A Lava-Jato colocara contra as cordas parcelas importantes do estamento político-burocrático, alguns de seus articuladores estavam até mesmo presos. As exceções foram o Judiciário e o aparato sindical, deixados incólumes. Some-se que os principais articuladores do estamento político-burocrático em Brasília e nos Estados perderam a eleição para novatos. Para acrescentar injúria à infâmia, Bolsonaro fôra sempre contrário às reformas neoliberais e não via com bons olhos nem a reforma tributária nem a reforma da Previdência, ambas no horizonte político daquelas semanas entre a eleição e o início do novo governo.
Para a “Faria Lima”, como se referem os jornais burgueses ao capital financeiro e industrial, era decisivo limitar o campo de ação de Bolsonaro e aprovar a reforma da Previdência. Não havia instituição capaz desses feitos que não fosse o Congresso. Nele, decisivo seria quem o controlasse: a estrela de Rodrigo Maia entrou em cena. Em poucos meses, patrocinou um acordo entre os grandes do estamento político-burocrático e, com essa “base de apoio”, negociou com os capitalistas a aprovação da reforma de Previdência e a limitação dos poderes da “caneta Bic” de Bolsonaro. De quebra, unificou uma ampla frente, incluindo o PT, todo o Congresso e o Judiciário, para enterrar de vez a Lava-Jato. O capital, nestas circunstâncias, precisando controlar Bolsonaro, abriu mão da Lava-Jato: Lula seria solto; Moro e Daltan Dallagnol conheceriam seus infernos astrais.
Uma das marcas do estamento político-burocrático é sua incessante luta intestina pelo controle da alocação das verbas públicas. Por isso a briga constante por Ministérios e, ainda, pela aprovação de leis que favoreçam este ou aquele deputado ou senador – ou mesmo que favoreçam a maioria deles, como foi o caso do “Orçamento Secreto” nos meses finais do governo Bolsonaro. Logo antes do início da pandemia (os últimos meses de 2019) e, logo após o pico da pandemia (os primeiros meses de 2021), o isolamento de Bolsonaro se refletia na ofensiva do Supremo e da Justiça nos sucessivos inquéritos e investigações, processos e ações judiciais contra ele e os seus e, ainda, na popularidade que tendia a cair. Arthur Lira, um representante do baixo clero no Congresso, viu sua chance de substituir Rodrigo Maia. Propôs uma aliança com Bolsonaro: este apoiaria sua eleição para presidir a Câmara e, em troca, Lira não deixaria passar nenhum pedido de impeachment. Assim foi acordado, assim foi realizado: caiu Rodrigo Maia e subiu Arthur Lira (que seria, num fato raro, reeleito para o cargo no início deste governo Lula).
Foi o descalabro dos meses finais do governo Bolsonaro: além das verbas do orçamento secreto, além do aumento das verbas públicas aos partidos… ainda foram aprovadas uma sequência de leis que dificultam a apuração da corrupção e que diminuem o poder de investigação quando se trata do estamento político-burocrático.
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A eleição de Lula, em 2022, deu-se, lembremos, com a ativa e militante participação do Judiciário. Não fosse as ações de Alexandre de Morais e outros, muito provavelmente Lula teria perdido. A diferença de votos foi insignificante. A estratégia quase derrotada dos petistas foi a mesma das semanas finais das eleições (perdidas) de 2018: adotar as bandeiras do bolsonarismo. Lembremos que, em 2018, Haddad passou a defender a concessão de armas “às pessoas certas”, o PT e seus candidatos se vestiram de verde e amarelo; “esqueceu-se” das bandeiras históricas pela liberalização o aborto, pelo combate ao criacionismo, pela reforma agrária, pela defesa do ensino público e gratuito, pela libertação da mulher do patriarcalismo – além de muitas outras. O caminhar à direita, uma marca do PT desde a sua origem, mas mais evidente após a derrota para Collor em 1989, acelerou-se: a defesa da democracia se daria, agora, não pela defesa das liberdades democráticas, mas pela eleição de um candidato cuja estratégia consiste em adotar de grão em grão o conservadorismo bolsonaristas… para roubar votos dos bolsonaristas. A lógica é, de fato, impossível de ser recusada: a forma de derrotar a direita é… se tornar como a direita. Primeiro falar, depois, fazer, como a direita… Se tornar, em suma, de direita. A essência da estratégia petista é tornar Bolsonaro desnecessário, metamorfoseando-se em um bolsonarismo envergonhado.
Os democratas, que apostaram em Lula contra o conservadorismo de Bolsonaro, se colocaram em um beco-sem-saída: não podem deixar de apoiar Lula (pois, nas cabeças deles, significaria fortalecer Bolsonaro). E, contudo, não têm como evitar que o governo se torne cada vez mais conservador e, portanto… que se alie ao PL — isto mesmo, o PL, o partido de Bolsonaro e seus filhos — para as próximas eleições!
Como dizia Cora Ronái, um “país vai para o brejo aos poucos construindo uma desgraça ponto por ponto”.
Lula, quando entrou no Planalto pela primeira vez, o fez nos braços do povo. Lembram da posse em janeiro de 2003? Hoje, para ir à praia, expulsa a todos, mesmo os moradores e vive cercado por um ostensivo aparato de segurança. Tem medo do povo. Encastelou-se! Ao contrário de Bolsonaro! Na política econômica e social, como já se sabia de antemão, as mudanças são pontuais e cosméticas: a reforma tributária e o novo marco fiscal nada mais são que a continuidade do velho neoliberalismo de FHC do “hiper-neoliberalismo” de Guedes. O crescimento da concentração de renda, da miséria e da exploração dos trabalhadores é o que promete para os próximos anos: nenhuma surpresa para quem acompanha a sanha com que nossas classes dominantes expropriam os trabalhadores!
Contudo, o verdadeiro “feito” do governo Lula3 até o momento tem sido a prossecução, pura continuidade, da entrega do poder de governar ao estamento político-burocrático – entrega que caracterizou a última parte do governo Bolsonaro. A cada dia que passa, a cada semana, basta uma pequena pressão de Lira ou dos deputados para que um novo ministério seja oferecido, para que novas verbas sejam liberadas ou para que legislações sejam aprovadas para aumentar o controle do estamento político-burocrático sobre a verbas públicas e o orçamento federal. A aprovação da Reforma Tributária foi assim: aumento o controle sobre a máquina estatal pelo estamento político-burocrático e, de quebra, este ficou bem na foto com o “empresariado” ao fornecer os votos necessários à aprovação. Se na aparência tivemos os 15 minutos de brilho de Haddad, na essência vivemos o fortalecimento do estamento político-burocrático.
A ilusão dos democratas de que Lula seria a reversão de Bolsonaro não passou de um delírio. Esta reversão, pela mão do PT e de Lula, jamais – sequer – foi uma remota possibilidade. A aliança com o estamento político-burocrático de Lira, somado a Mercadante no BNDES, junto com a pressão por financiamentos eleitorais e caixas 2 nas eleições… se Lula3 não terminar ainda mais similar a Bolsonaro, o que é mais provável até aqui, talvez termine como Dilma, jogando o país em uma nova crise econômica e política.
Enquanto isso, graças à Usina de Belo Monte construída no último governo Lula para financiar com 100 milhões de reais a campanha de Dilma para a presidência, os ianomâmis são exterminados (e não há bolsa alimentação que reverta a mortandade de uma tribo que perdeu suas raízes, pois perdeu seu solo), a miséria crescente joga na fome aguda (quando falta ao menos uma refeição por dia) mais de 20 milhões de brasileiros — e o número de milionários cresce com uma rapidez que só perde para o que ocorre na China.
Nada de bom podem os democratas, para não dizer os trabalhadores, esperar deste governo. Uma real melhora do país apenas pode vir por uma revolução do proletariado e dos trabalhadores. Só assim poderemos pensar em um mundo sem a exploração do ser humano pelo ser humano. Esta, a única alternativa! Aprofundar a democracia com Lula não passa de um beco-sem-saída no fundo do qual se encontra o conservadorismo mais tacanho.
A revolução não está na ordem do dia!? Esta a nossa tarefa: colocá-la!