Os limites da democracia burguesa abrasileirada são muitos. Decerto que não há como tratar, em uma matéria com o alcance do presente texto, de um tema dessa magnitude. Aqui tocaremos em algumas das armadilhas postas em prática pelos defensores da esquerda que se considera democrática. Tal arapuca atende pelo nome de Identitarismo.
O que se convencionou chamar de Identitarismo ganha muito relevo no debate que circunscreve a democracia brasileira contemporânea; haja vista que os cães de guarda da democracia alinhada à esquerda bradam a todo lado que o Identitarismo é uma necessidade democrática.
Para discutir Identitarismo, nos marcos de tal democracia, mesmo que sem as condições necessárias de aprofundamento, o pesquisador jamaicano Stuart Hall serve de aporte. Ele compreende que o mundo se subdividiu entre dois polos: de um lado figura certo populismo autoritário, de outro, aloja-se determinado autoritarismo liberal.1 Ressalta-se que o autor jamaicano, embora se considere marxista, trafega sem nenhuma cerimônia pelos corredores do pensamento pós-moderno.
Com base nas teses de Hall, entre outros elementos, Anchile Mbembe defende que a era do humanismo está terminada. Para o pesquisador camaronês, a principal cisão na primeira metade do século XXI dar-se-á entre a democracia liberal em oposição ao capitalismo neoliberal. O investigador africano sintetiza que, com isso, será impossível à paisagem intelectual do século XXI ser formada pela razão. Para ele, é mais provável que a liberação das paixões, das emoções e dos afetos ocupem o panorama da visão de mundo do século XXI.2
De modo bastante sintético, esses elementos, levantados por pesquisas insuspeitas, pois possuem raízes no apoio à democracia burguesa inclinada à esquerda, queiram ou não seus autores, abre as portas para se debater o Identitarismo, que por sua natureza, é um elemento necessário à continuidade da democracia burguesa.
O escritor estadunidense de origem paquistanesa Asad Haider dá interessante mote para nosso debate. Para categorizar política identitária, o pesquisador usa a seguinte definição: “É a ideologia que surgiu para apropriar o legado emancipatório [logrado pelos movimentos das chamadas minorias] e colocá-lo a serviço do avanço das elites políticas e econômicas.” (HAIDER, 2018, p. 37).3
Para esse investigador, é preciso articular as questões identitárias ao cenário de desenvolvimento capitalista que, para amordaçar, intimidar e ou domesticar os movimentos que lhes são antagônicos, procura cooptar o que se move, inicialmente, contrário ao capitalismo.
Não se pode considerar Haider como um investigador marxista revolucionário. De modo geral, suas pesquisas oscilam entre as reformas estatais e a democracia burguesa (para variar, articulada à esquerda). De todo modo, as pesquisas do autor ajudam a entender como um movimento anticapitalista perde a mobilização contra o que lhe criou, o capitalismo. O mais importante, diz ele, “é saber se […] [o movimento] é capaz de atrair um amplo espectro de massas e de possibilitar sua auto-organização, buscando construir uma sociedade na qual as pessoas se governam e controlam suas próprias vidas. Possibilidade essa que é fundamentalmente impedida pelo capitalismo. (p. 38).”
Bem, já que temos alguns elementos para discutir Identitarismo, vejamos de onde ele surge e como se desdobra até chegar no debate contemporâneo. Para isso, é preciso compreender o que se entende por Tokenismo.4 Ou seja, “uma inclusão simbólica que consiste em fazer concessões superficiais a grupos minoritários.” Seu significado provém da palavra “token”, que significa, em inglês, “símbolo”. O termo surgiu nos anos 1960, nos Estados Unidos, durante o período de forte luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Martin Luther King, em artigo publicado em 1962, foi o primeiro a utilizar o termo “tokenismo”.
As mulheres lésbicas negras, envolvidas com o movimento dos Panteras Negras, reivindicaram, cerca de uma década depois, determinado protagonismo dentro desse movimento. Mas, foi na disputa eleitoral entre Hillary Clinton e Donald Trump, nas eleições presidenciais estadunidenses de 2016, que os democratas resgataram o termo para enfrentar o conservadorismo retrógrado dos republicanos. Democratas, considerados de esquerda e republicanos, designados de direita; seria coincidência?
Esse resumido panorama possibilita apontar alguns efeitos decadentes que o pensamento pós-moderno planta, desenvolve e colhe nas salas de aula das universidades mundo afora sob a alcunha do Identitarismo. É nesse sintético quadro que muitas expressões, com a finalidade de resignar a luta contra o capitalismo, passam a fazer parte da sociologia acadêmico-oficial que caminha sem restrições pelos corredores universitários e passam a inflar discursos de toda ordem. Como muito bem aponta Ellen Meiksins Wood, o capitalismo é tão poderoso que não conseguimos pensar contra ele.
São muitas e de diversas ordens as expressões que, por dentro da organização capitalista, procuram a adaptação de seus caninos defensores ao estado de guardião da democracia burguesa abrasileirada. Não é oneroso relembrar que tal defesa jamais luta pela superação do capital, senão para adaptar a luta revolucionária ao conformismo das oportunidades parlamentares.
Ressignificação; Resiliência; Gestão Democrática; entre muitas outras expressões poderiam ser somadas ao cabedal bem estruturado do léxico acadêmico irmanado às esquerdas democráticas.
Sobre essa armadilha são postos termos que ao contrário de questionar a emboscada, reforça a arapuca; dado que turva a visão de mundo dos que precisam alinhar forças contra o capital e seus malefícios. Algumas das principais armadilhas abraçadas pelo léxico universitário-sociológico que se considera avançado são: Lugar de fala (Djamila Ribeiro); Ancestralidade: (Sônia Guajajara), mas poderia ser de Ailton Krenak; entre muitos outros exemplos prontos e acabados que a contraditória encruzilhada do Identitarismo choca no ninho do abutre. Para evitar o risco de vômito súbito, reservamo-nos o desvio da obrigação de acrescer a lista; visto que ela é grande, espessa, esparsa e nauseante.
Apesar desse monte de enjoo discursivo, a realidade no chão dos corredores universitários dá o tom concreto e real do tamanho da armadilha.
Para finalizar nossa matéria com alguns exemplos (ou seriam contraexemplos?), muitos programas de pós-graduação criam obstáculos ao gozo da licença maternidade de pesquisadoras que dão à luz durante o mestrado ou o doutorado. Não obstante ao reconhecimento por lei da necessidade de descanso e dedicação à criança no período puerpério, algumas coordenadoras de pós, mesmo sendo mães e avós, caem na armadilha e entendem que as puérperas devem defender suas pesquisas a todo custo. Cadê a identidade? (Aqui o identitarismo é engolido pela Plataforma Sucupira, ou seria Sucuri?).
É tão lamentável que não nos agrada lembrar, mas calar é pior; por isso, registra-se que há uma quantidade nada desprezível de denúncias engavetadas contra homens e mulheres da cor negra que em postos de destaque na escadaria do Lattes, utilizam-se do cretinismo dessas oportunidades para abusar, assediar e molestar um contingente significativo de investigadoras e pesquisadores. Mais lamentável é que, de modo geral, o máximo que a pessoa abusada consegue é a denuncia. Dificilmente, no entanto, há investigação e na maioria das vezes quem denuncia acaba sendo envergonhado perante os postos de poder que a armadilha Identitária cria dentro da universidade.
1 MBEMBE, Achille. A era do humanismo está terminando. Tradução: André Langer. Instituto Humanitas Unisinos. Eventos. Publicado em 24 jan 2017. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/eventos/564255> Acesso efetuado em 27 maio 2023.
2 HALL, Stuart. The hard road to renewal: Tatcherism and the crisis of the left. London: Verso, 1988.
3 HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Baderna, 2019.
4 Para saber mais, indicamos os seguinte endereços: https://www.politize.com.br/tokenismo/https://lavrapalavra.com/2020/11/25/identitarismo-a-nova-cara-do-liberalismo/ e http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/os-meritos-e-os-perigos-do-identitarismo.html