A questão Palestina e o Estado

Desde o início de outubro, com a escalada das investidas bélicas israelenses/estadounidenses, a violência contra o povo palestino tem ocupado uma posição central nos debates da esquerda brasileira e mundial. As instituições e membros da esquerda prontamente se manifestaram em solidariedade à causa palestina, protestando contra o brutal colonialismo israelense, reivindicando o cessar fogo, o fim do genocídio e a criação de um Estado palestino.

Entre as reivindicações a defesa da criação de um Estado Palestino chama atenção e acende, no nosso entender, um sinal de alerta. A criação de um Estado indica o recuo para uma posição democrata no interior dos debates. E ao que nos parece, a reivindicação da criação de um Estado Palestino consiste em um perigoso erro de análise e estratégia no interior da esquerda organizada.

Em primeiro lugar, a reivindicação da criação de um Estado palestino parece ter como causa um desentendimento acerca das determinações expansionistas que caracterizam a própria natureza do capital. O genocídio como política institucionalizada de Israel faz parte de um processo de acumulação por espoliação1 que se expressa em uma ideologia perversa que possui um objetivo claro: realizar um processo de limpeza étnica, que prevê a destruição física de todos os Palestinos para o consequente domínio de todo o território. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um método de acumulação capitalista que sempre foi uma ferramenta do processo de expansão capitalista e que se tornou, nas últimas décadas, ainda mais fundamental face à crise estrutural do capital.

Também é verdade que atualmente esse método de acumulação por espoliação, quando perpetrado pelos países imperialistas (ou se utilizando de outros indiretamente, como Ucrânia e Israel) se fazem valer dos volumosos investimentos do capital da indústria militar, sendo este uma realidade da acumulação do capital desde o início do século XX. Isso significa que todo um setor de aporte tecnológico e científico torna a produção desta mercadoria cada vez mais destrutiva. A escalada do genocídio sobre os palestinos também deve ser compreendida como uma consequência dos volumosos e lucrativos investimentos nos setores de ponta da indústria bélica – sobretudo a estadounidense – como uma contratendência necessária a queda de lucro e a taxa de utilização decrescente.

A partir dessas determinações, reivindicar a criação de um Estado Palestino é reivindicar a criação de um Estado capitalista – com tudo que isto implica – e o fazer em um momento histórico em que o conjunto de relações sociais de produção burguesas estão desenvolvidas até a saturação completa, não apenas territorialmente, em Israel, mas globalmente. Não somente a criação de um Estado capitalista Palestino não é desejável, como também é inviável, dado que a via de desenvolvimento nacional do capital está obstruída historicamente. E por consequência da saturação do sistema global do capital, a acumulação capitalista não pode prescindir da acumulação por espoliação operada ativamente por Israel através do genocídio e apoiado ativamente, política e militarmente, pelos EUA. Ao mesmo tempo, a saturação do capital globalmente constituído bloqueia qualquer potência histórica da luta palestina enquanto essa se manter como luta direta pela propriedade privada e sua consequente formação estatal.

É assim que a luta nacionalista termina por ser um beco sem saída. Hoje, quando a constituição do capital como força globalmente constituída é um fato histórico, tornou-se impossível qualquer forma de nacionalismo que não redunde em um fracasso até mesmo do ponto de vista do estabelecimento de relações burguesas – o nacionalismo, enquanto possibilidade, esgotou-se historicamente até mesmo para a burguesia, dado o esgotamento da via nacional do desenvolvimento das forças produtivas do capital – isto, claramente não se aplica a ideologias nacionalistas, inclusive em suas versões perversas, tal qual a sionista. E consequentemente, tal esgotamento torna ultrapassada historicamente a posição de Lênin, quando imaginava as revoluções nacionais como formas mediadoras de luta da revolução socialista através da autodeterminação dos povos – que historicamente demonstraram-se apenas vias distintas de desenvolvimento do capital, inclusive naquelas situações revolucionárias ideologicamente motivadas pelas melhores aspirações socialistas. É dessa forma que a própria fundação de um Estado Palestino parece carecer não apenas das bases materiais imediatas, nacionais, mas também das possibilidades históricas no interior do desenvolvimento do capital social total, cuja ascendência histórica está, atualmente, consumada2.

As análises que reivindicam a fundação de um Estado parecem desconhecer seu caráter essencial. Como estrutura geral de comando político do capital, a função do Estado consiste, primariamente em totalizar as unidades reprodutivas do capital. Determinando dessa maneira, a salvaguarda da propriedade privada e realizando a mediação da disjunção entre produção e controle, assegurando desta forma a própria existência continuada do capital que consiste nessa separação. Em nosso juízo, sem essa avaliação, qualquer estratégia deverá necessariamente fracassar, pois ao ignorar os determinantes estruturais fundamentais do capital e do Estado não se pode estabelecer corretamente as possibilidades de luta e seus objetivos.

É por essa razão que a ideia da fundação de um Estado redunda de um subjetivismo e um voluntarismo dos maiores. Pois, desconsiderando todos esses determinantes, reivindica-se a fundação de um Estado via proxy, sem as relações objetivas fundamentais que a sustentem, pois essas se encontram inviabilizadas. A solução imaginada, de criar um Estado, termina desaguando em um apelo humanitário abstrato para organizações internacionais sem qualquer poder político efetivo, como ONU e demais instituições burguesas. Ao fim, opera-se um recuo para o campo da democracia e da política como campos resolutivos.

Em suma, reivindicar hoje a criação de um Estado Palestino é um desejo subjetivo, nada mais que uma vontade sem apoio nenhum na realidade. É desta forma que o apoio dos comunistas à criação de um Estado no território da Palestina consiste num contrassenso completo, seja pela sua impossibilidade histórica, seja mesmo face ao projeto revolucionário de superação do capital que conforma, como apontou bem Rosa Luxemburgo, no nosso programa mínimo.

Por mais desesperador que isso possa ser face a barbárie em presença, não existe solução parcial e imediata possível, nem por meios políticos, através da criação formal de um Estado Palestino que produziria a emancipação política, nem por meios militares, na medida em que não parece haver vitória militar total possível. A possibilidade histórica da salvação do povo palestino passa pela revolução socialista, não apenas no território da Palestina histórica, mas a revolução socialista em escala mundial, que poderia quebrar a cadeia do capital e criar as condições de destruir as relações pelas quais Israel tem de necessariamente operar a forma de acumulação por espoliação.

Por isso, ao invés da defesa do Estado palestino, nossa posição deveria ser a defesa da revolução socialista e levantar a bandeira da necessidade da revolução mundial, com o que tudo isso implica: a superação do capital, do Estado e do trabalho assalariado.

Em suma, não apoiamos nenhum tipo de programa ou bandeira de luta que esteja propondo a fundação de um Estado Palestino como solução para a situação palestina atual. Não poderíamos apoiar tal reivindicação, na medida em que, em nossa análise, trata-se em uma ilusão politicista sem nenhuma possibilidade real e que apenas conduz a uma prática política voluntarista e ineficaz.

Para nós, trata-se de denunciar os reais interesses em questão na prática genocida do Estado de Israel. A sua brutal prática militar como uma necessidade imperativa da expansão e acumulação do capital, através do mecanismo da acumulação por espoliação e garantia da propriedade privada em toda a região. Trata-se de reiteradamente de demonstrar que nenhum problema parcial pode ser resolvido sem que a superação do capital, enquanto relação social, ocorra.

Essa é a razão que faz a ofensiva socialista mais urgente do que nunca. E que coloca a revolução comunista na ordem do dia. Ao invés de recuarmos para posições democratas, devemos avançar para posições revolucionárias, compreendendo a situação histórica atual, na qual nenhuma questão particular, mesmo a enfrentada pelos palestinos, possui solução parcial.

Em suma, entendemos que defender a criação do Estado Palestino não faz mais que separar o capital da sua essência bárbara: capital e genocídio são como carne e osso e estão unidos inseparavelmente, como o “caracol e a sua concha”.

Este deve ser nosso terreno de luta! Tal trincheira que devemos defender! Os horrores que assistimos, todas as mortes e destruição da recursos, fazem parte da essência do capital: daqui a necessidade da revolução comunista!

Chega de genocídios! Abaixo ao capital! Abaixo ao Estado! Viva a revolução socialista!


1 – Trata-se da compreensão, apoiada em Rosa Luxemburgo, que a acumulação primitiva não consiste apenas em um processo histórico originário, mas uma forma de acumulação constitutiva do capital, que subjaz sua lógica. Acumulação por espoliação, porque trata-se mesmo disto, da expropriação direta de territórios e recursos.

2 – Evidentemente, fazemos referência aqui, a tese de Mészáros sobre o início da crise estrutural do capital nos anos 1970.

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