Em uma tarde de domingo, assistindo diante da televisão aos programas insossos produzidos por esta precária opção de lazer que submete a maioria das famílias brasileiras à mesmice de seus programas dominicais, resolvi ir ao cinema. Como quase não existem mais salas de projeção fora dos shoppings, fui até o mais próximo de minha residência. Era um desses eventos comuns no mês de dezembro: uma retrospectiva de filmes policiais.
Chegando lá, comecei a me sentir em um país de primeiro mundo. Por entre os vidros espelhados, eu me via no meio de todas aquelas pessoas vestidas com roupas que pareciam vir do mesmo armário. Ao passar ao longo da fila do ingresso, sentia chegar ao nariz um cheiro que mais parecia uma única fragrância. Eram homens e mulheres da cor branca usando maquiagens que tentavam disfarçar o estado de suas caras. Ostentavam, na cintura, como se fossem ornamentos comuns, de um lado o celular, do outro a chave do carro. Manipulavam o aparelho de telefone não para telefonar, mas para operar alguma coisa que faziam os presentes serem invisíveis. As pessoas ao redor não se importavam com suas invisibilidades, pois se comunicavam também por meio da pequena máquina apoiada na palma da mão.
Este cenário transporta-me para um mundo lindo, cor de rosa e repleto de um cheiro comum, de um lugar comum. Tal comunhão, porém, era permitida apenas aos invisíveis que ali estavam. Chego a imaginar que o planeta está realmente globalizado, e que a saída mais conveniente é me convencer de que estou incluído nesse clube de benesses permitidas a quem pode ir ao cinema, usar roupas de grifes, portar celular e adquirir automóvel; além de ter dinheiro para circular por um shopping nas cercanias do natal.
Portanto, que besteira!
Deixa-me curtir o filme em paz. Eu também posso tomar banho de banheira com hidromassagem, andar em shopping e, ainda por cima, possuo celular e carro.
O filme escolhido foi Chamas da vingança (EUA, 146 min, 2004), dirigido por Tony Scott e estrelado por Denzel Washington. Por mais que se cultue histórias policiais, com pitadas de extrema violência e suspense, a película não pode ser considerada uma grande obra de arte. Apresenta como mérito, no entanto, expor, de maneira inequívoca, que a maioria absoluta dos habitantes do nosso continente vive em condições de sobrevivência completamente inferiores as dos presentes na sala de projeção.
Deixa claro também, que como eu, as demais pessoas presentes à exibição não são os exploradores diretos dessa maioria; mas, em alguma medida, mesmo que indiretamente, ajudam confortavelmente a nutrir a miséria. O que mais me incomodou, todavia, é que a maioria dos atentos espectadores, abrigados requintadamente em uma luxuosa sala de cinema, não compreendia sequer a denúncia velada pelo filme: a transformação da fome e da miséria na América Latina em cenário para ficção.
A película explora a relação de um ex-agente americano da CIA e uma garotinha mexicana, filha de um decadente empresário do setor automobilístico. O ex-agente, personagem de Denzel Washington, é negro, alcoólatra e desempregado. Este último motivo leva-o ao México para trabalhar como segurança de uma menina branca. O guarda-costas se afeiçoa pela pré-adolescente, e desenvolve por ela um sentimento jamais sentido em sua vida repleta de cruéis conflitos pessoais, a exemplo de violência, assassinatos, corrupção, entre outros elementos dessa monta.
O pai da criança vê-se afundado em débitos financeiros. A dívida foi contraída em virtude de os investimentos no seguimento de montagem de carros serem, agora, direcionados pelos Estados Unidos para a China, e não mais para o México. Para salvar os negócios, o industrial arquiteta um plano de sequestro da própria filha. Vale ressaltar o seguinte: a intenção deste grande pai era receber o dinheiro do seguro sequestro; possibilidade assegurada nos casos em que os sequestráveis possuem uma segurança privada. É aí que entre a personagem de Denzel Washington.
É óbvio que a menina acaba sendo sequestrada, daí pra frente Tony Scott e seu aparato hollywooldiano se encarrega de fazer o agente matar todos os bandidos e recuperar a niña.
Mas, e o que isso tem a ver com a globalização?
Aparentemente nada!
Somente aparentemente…
É importante relembrar que Tony Scott,1 quase vinte anos antes, havia dirigido o longa Top Gun: ases indomáveis (EUA, 110 min, 1986). Pelo que indica o desenvolvimento deste filme, sobretudo sua repercussão, a pretensão do diretor não era plantar sentimento revolucionário nas pessoas que o assistem, senão alimentar a lógica do capitalismo por via romântico-idealista. No início da segunda metade dos anos de 1980, o filme aborda a relação de determinado piloto da marinha estadunidense com uma instrutora de voo. Além de se tornar o maior sucesso de bilheteria de 1986, Top Gun impulsionou uma carreira de jovens americanos ao alistamento nas forças armadas do país do Tio San.
O enredo, tanto do primeiro filme como do segundo, para o que tratamos aqui, importa muito pouco. Por isso os deixamos de lado. O que nos interessa são as primeiras cenas de Chamas da vingança. Quando o segurança, que vem de carro dos Estados Unidos para o México, chega no país latino, as câmeras dirigidas por Tony Scott mostram meninos e meninas nos semáforos pedindo esmolas, fazendo malabarismos, limpando para-brisas, ou se esfolando de alguma maneira para chamar a atenção dos motoristas, na expectativa de ganhar alguns míseros trocados.
Se as placas de trânsito não advertissem aos telespectadores que a película se passa na Cidade do México, as confortáveis pessoas sentadas nas poltronas da sala de cinema poderiam supor que a fita estaria sendo rodada em Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro, La Paz, Bancoc, Soweto ou qualquer outra metrópole dos países da periferia do grande capital.
Apesar de muitos autores, inclusive alguns com raro brilhantismo, relatarem que a irreversibilidade do capitalismo é impossível, e que, sem exceção alguma, temos que nos ordenar aos ditames da nova (des)ordem global, o que mais pega a atenção em Chamas da vingança é que, em diversas cenas, fica evidente a força destrutiva dos efeitos do capital.
1 Tony Scott nasceu em 1944 e suicidou-se, ao pular da Ponte Vincent Thomas em Los Angeles, em 19 de agosto de 2012.