11/07/2021
Quem acompanha a conjuntura atual do Brasil poderia, de forma anedótica, afirmar que aqui se morre de tudo, menos de tédio.
Escândalos de corrupção, relatos recorrentes da violência estrutural e estruturante da vida cotidiana, crises e carências de toda sorte. Crise econômica, sanitária e política se sobrepõem em uma formação social marcada pela desigualdade e pela barbárie. Embora existam diversas formas de explicar esse país, é interessante retornar para algumas das interpretações clássicas do Brasil, há tanto esquecidas.
Entre as décadas de 1930 e 1960 houve um esforço intelectual significativo que buscava pensar na formação do país. Dentre os principais nomes, podemos citar Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Sergio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido, dentre outros. Cada qual em sua respectiva área do saber, realizou um esforço de pensar o Brasil desde suas origens coloniais, remontando suas análises ao século XVI. No livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado pela primeira vez em 1942, Caio Prado Junior declara na primeira página da introdução:
Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimento essenciais que a constituem num largo período de tempo. Quem observa aquele conjunto, desbastando-o do cipoal de incidentes secundários que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível, não deixará de perceber que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação.
Talvez seja difícil para pessoas que cresceram na chamada terceira república, inaugurada com a Constituição de 1988, fazer esse exercício de distanciamento. Vivemos em um mundo que aparenta ser digital, permeado de dispositivos e recursos tecnológicos, que embora prometam ampliar a visão de mundo do usuário direcionam os conteúdos da rede por meio de algoritmos que não são divulgados publicamente.
Após um período de euforia coletiva no início do século XXI, é possível afirmar que não houve mudanças nessa “linha mestre” da formação brasileira.
Caio Prado Junior defende no conjunto de sua obra que o “sentido da colonização” estabelecido pela coroa portuguesa para sua terra além-mar foi a de um empreendimento comercial. O Brasil foi, desde seu berço esplêndido, gestado e conduzido como uma “empresa”. Notável exemplo disso é que, diferente de seus pares espanhóis, não houve preocupação em fundar universidades no território colonial. Para além das missões religiosas, promovidas pela Igreja, e não pela Coroa, não houve preocupação em constituir qualquer nexo de sociabilidade local, para além das relações com a metrópole. Séculos de exploração, movidos por diferentes atividades econômicas (pau-brasil, açúcar, ouro…), promovida por portugueses através de mão de obra escrava, e cuja acumulação era direcionada à Portugal.
Povos originários dizimados, revoltas locais massacradas. Colônia, império, república, em uma continuidade espantosa. Caio Prado Junior pontua uma característica tupiniquim que ainda hoje é verdade em uma nota:
Uma viagem pelo Brasil é muitas vezes, como nesta e tantas outras instâncias, uma incursão pela história de um século e mais para trás. Disse-me certa vez um professor estrangeiro que invejava os historiadores brasileiros que podiam assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado.
Voltando ao século XXI, alguns manifestam surpresa ao ouvir na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a atuação do governo federal durante a Pandemia, que a aquisição das vacinas era “um negócio”. Que em um contexto de súbito “esclarecimento”, no qual a comunidade global pretende promover a preservação ambiental e a economia sustentável (como se isso fosse possível), garimpeiros e madeireiros rasgassem a Amazônia. Enquanto observamos horrorizados as estratégias econômicas pífias de controlar a estagnação e a inflação, normalizamos o aumento de homicídios em áreas periféricas e o aumento da violência doméstica. Para além de nossos mortos asfixiados pela Covid-19, corpos sangram como nunca registrado nesse país.
Permanecemos indignados em nossas bolhas virtuais. Nas janelas das janelas das janelas.
O sentido da colonização e do capitalismo dependente brasileiro agudiza-se.
Para além disso, a reflexão crítica sobre a formação brasileira se perdeu. A forma de fazer ciência mudou, as exigências de produtividade dos intelectuais e a competição entre os que foram os quadros das universidades no país impedem o avanço coletivo do conhecimento. Os movimentos sociais que resistem, permanecem na defensiva. Embora desde maio estejam ocorrendo manifestações que tem reunido um número significativo de pessoas, não há um projeto. Apenas resistência, ações defensivas contra o desmonte sistemático dos tímidos avanços na organização social brasileira.
Como defendido na última Newsletter: retirar esse governo do poder não é o bastante. Aguardar as eleições de 2022 não é o bastante. É fundamental pensar não só no passado, em que se constituíram nossas estruturas sociais perversas. É preciso olhar para frente. Construir um mundo coletivamente, para todos.
Isso não se faz nas urnas. O “sentido da colonização”, as políticas de governo, a perpetuação das violências impostas ao povo, são ações de Estado. É esse Estado que é legitimado socialmente para regular e ordenar a sociedade e o território. Trata-se de um mecanismo e um instrumento de dominação e controle social, construído para tal. Não poderá ser subvertido para agir a favor da sociedade que foi concebido para controlar. Não há reforma possível. Nosso único caminho, com efeito, é a revolução socialista!
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Para não ser um Olavista”, escrito por Sergio Lessa.
Resumo: Vivemos um curioso momento. Ao lado de um desenvolvimento científico sem par, que nos abre a perspectiva de entender não apenas a história da humanidade, mas também a conexão desta com o desenvolvimento de todo o universo, ganham espaço concepções tão retrógradas e absurdas quanto o terraplanismo e pensadores tão desqualificados quanto um Olavo de Carvalho. Bolsonaro na Presidência nada mais é que mais uma expressão daquele processo que Lukács, já nos anos de 1930, denominava de “decadência ideológica da burguesia”, em um ensaio que teve uma nova publicação entre nós pelo Anuário Lukács de 2015 (Instituto Lukács). Em poucas palavras, para manter-se enquanto classe dominante, a burguesia precisa falsificar a realidade para justificar as alienações que compõem a sua essência e, ao fazê-lo, produz as teorias mais absurdas, desde a superioridade da raça ariana, dos nazistas, ao terraplanismo e ao olavismo de nossos dias. Contra essa tendência, a filosofia e a ciência são fundamentais. A divulgação do conhecimento científico e filosófico é uma tarefa tão urgente quanto qualquer outra para os revolucionários. Os textos nesta coletânea possuem esta finalidade: de modo básico e buscando uma forma compreensível, esclarecer questões e tratar de problemas tais como são colocados pela nossa realidade e não a partir das fantasias e delírios das ideologias dominantes.
Edições: 2020 – Ebook