Coletivo Veredas Newsletter NL24 – Bolsonaro, Centrão e a CPI Covid

NL24 – Bolsonaro, Centrão e a CPI Covid

02/05/2021

Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. (ENGELS)

Iniciemos com uma afirmação: A formação do capitalismo brasileiro é determinada sobretudo pelo caráter autocrático da burguesia brasileira que deriva de seu caráter retardatário e transformista.

Na medida em que a burguesia brasileira nasce das entranhas do latifúndio e da classe senhorial, ela só se transforma em burguesia predominantemente por um impulso externo das economias centrais.

Esse influxo da formação do capitalismo brasileiro deriva sobretudo da transferência de valor que desde a gênese da burguesia brasileira lhe imputa o seu caráter reacionário e autocrático. O transformismo que dá gênese a burguesia brasileira tem no Estado um componente essencial. As bases sociais de sua existência estão justapostas com a transferência de valor para a “metrópole”, isto é, para os capitalistas do centro, imputando a esta classe sua parca potência histórica. Em suma, essa classe não pôde nunca nem mesmo aspirar a ser revolucionária, nasceu ontologicamente reacionária, e como seu corolário, foi desde sempre ideologicamente medíocre.

O arco de desenvolvimento da gênese das relações capitalistas no Brasil até o presente passa por clivagens e modificações sem nunca quebrar o caráter determinante da transferência de valor e a impossibilidade de levar a revolução burguesa as últimas consequências, isto é, a revolução burguesa que realiza a cidadania na forma clássica. Não há, em tal percurso histórico, nenhuma modificação substantiva no caráter determinante desta burguesia. E de tais determinações se alça o caráter sui generis da sociedade brasileira.

Sendo a mediocridade e o reacionarismo marcas indeléveis, aprofundadas pela crise estrutural – uma crise da totalidade do sistema do capital, inclusive da política e do Estado burguês – não é casual que de tal poço de desumanidade socialmente posto faça com que um político igualmente medíocre e desprezível ganhe relevância em um período de completa ausência da luta do proletariado no plano sócio-histórico.

Os vetores de uma tal ausência são as tendências gerais da crise do movimento comunista, gerados sobretudo pelo stalinismo e pela social-democracia, junto ao aparecimento e desenvolvimento da aristocracia operária possibilitada pela dominância da mais-valia relativa.

No Brasil, conjuntamente a esse processo, gerou-se uma aristocracia operária retardatária. Se entrava em ocaso a potência política de setores da aristocracia operária europeia, no Brasil esta saltava ao plano histórico com a redemocratização, sobretudo na figura do Partido dos Trabalhadores.

O governo do PT, como assinalamos na Newsletter anterior, não demorou mais que minutos para assentados na cadeira do Palácio do Planalto demonstrar que entre a esperança propagada e o medo não existia então muita diferenciação.  Toda luta social do período seguinte, como sabemos, foi subordinada a lógica operante e inarredável do capital. A lei máxima foi a governabilidade, e com ela, a transformação de todos os movimentos sociais em aparatos de sustentação do governo. Longe dos reais interesses históricos da classe, operou-se o giro total as políticas públicas de salvação do capital, ironicamente, sustentadas politicamente pelos ditos representantes da classe que deveria ser seu coveiro.

A política das “campeãs nacionais” do PT fracassa, dado a correlação da crise de 2008 com o decaimento dos preços da commodities, a torneira de onde provinham ganhos que permitiam operar uma longa rede de burocratas operadores políticos e ao mesmo tempo garantir o financiamento dos programas do capital nacional e internacional começa a minguar. Essa situação se agrava e desagua no impeachment.

O que interessa a nós imediatamente é que esse completo desarme dos movimentos sociais e partidos políticos, com o voluntarismo e politicismo que lhes são hoje característicos, derivou do tardio aparecimento da aristocracia operária brasileira em conjunto com a crise do movimento comunista já aprofundada. Esse duplo movimento gestou e deu luz ao completo vazio do proletariado na cena histórica, ainda que aqui e acola lutas subterrâneas persistam, elas nunca chegam a ofensiva realmente necessária. Permanecem inscritas na forma e no conteúdo na linha de menor resistência que marcou até aqui a luta contra o capital, sempre defensiva no processo de ascensão histórica deste.

Desse modo, desde que a burguesia tocou o hino fúnebre do projeto democrático-popular petista, o que importava no processo era a reordenação das franjas de classe da burguesia com o enxugamento da parcela da mais-valia destinada ao pagamento da corrupção ao centrão. O dito “lavajatismo” tem ai sua justificação.

O governo Temer e a Lava-Jato servem fundamentalmente para destruir as correias de transmissão das verbas para a base de apoio do PT, movimentos sociais, essencialmente MST e CUT, ao mesmo tempo em que enxuga os canais da corrupção que serviam para compra de apoio por parte do governo Lula e Dilma.

Sendo bem sucedida em seus intentos de aumentar a apropriação sob a mais-valia do Estado em detrimento das parcelas destinadas a corrupção, a burguesia se dirige então para as eleições de 2018. E o problema se anuncia dessa forma, nenhum candidato da burguesia tem qualquer possibilidade de se alçar como crítico da própria política, antes, todos se apresentam como os salvadores dessa. E tal crítica foi realizada por um miliciano, deputado do “baixo clero” que por 27 anos foi escanteado dos grandes acordos e conchavos dada sua gigantesca mediocridade, mesmo para os níveis patéticos dos operadores políticos brasileiros, e que por isto mesmo pôde aparecer como o novo, paladino da justiça e figura ilibada. O que é uma evidente falsidade, para não falar dos episódios das “rachadinhas”, basta para constatar isto, dar uma rápida olhada na lista de Furnas.

O resultado da eleição, portanto, é em alguma medida lastreado com o apoio da burguesia, Bolsonaro, ainda que figura incômoda para a burguesia, mas é não tão incômoda quanto poderia ser um Fernando Haddad, ao menos não em 2018. Que Bolsonaro assumiu o palácio do planalto com o golpismo marcando cada passo até a cadeira presidencial não é segredo.

De um lado, Bolsonaro esperava contar com o mesmo ímpeto golpista por parte dos militares das forças armadas, na medida em que estes fossem tragados para o governo na base das barganhas de cargos, e com tal imbricamento de interesses, defendessem o governo. A isso se aliava as posições da sociedade civil com os apoiadores de Bolsonaro, e aqui reside a necessidade patente de uma ala ideológica que se instalou na sala número 2 do gabinete.

O que agora é evidente, e a Pandemia não criou, mas trouxe a baila com novos matizes, é que a burguesia brasileira tinha sem dúvidas interesse nas reformas de Paulo Guedes para reverter a queda nas suas taxas de lucro e eleva-las ainda mais, mas não tinha interesse nenhum na perca do controle sobre o Estado. Por isto, os setores do capital e seus canais, especialmente os grupos de mídia, não deixaram de trazer a público toda vez que achassem necessário as artimanhas e conchavos que Bolsonaro fez para barrar a investigação dos crimes de seus filhos milicianos.

Por isto, Moro e as denúncias de interferência de Bolsonaro na PF se transformaram em assunto de monta, visto que não se tratava apenas de proteger os filhos, mas de solidificar posições em órgãos que como linha direta, funcionariam mais proximamente a uma polícia da presidência, e imediatamente uma polícia política. A PF ainda que seja inerentemente política, opera ainda no interior de ritos burocráticos e certos critérios de impessoalidade.

Os representantes da burguesia, o centrão no Congresso e o STF, mais a segunda turma que a primeira, é verdade, funcionaram então como poder moderador dos impulsos de Bolsonaro. O conjunto de medidas tomadas nessas duas esferas do Estado burguês sempre foram para, mantendo a política econômica, criar os fatos políticos que pudessem moderar os impulsos de Bolsonaro. De um lado, se quer dar estabilidade interna ao governo para seguir o calendário de reformas, de outro se mina os pilares de um político que não consegue manifestar de maneira adequada os interesses de setores relevantes da burguesia.

É neste cenário geral que a Pandemia chega e produz essa tragédia humanitária, sem precedentes, do ponto de vista sanitário no país. É evidente que o “negacionismo” bolsonarista serve com alguma eficácia ao capital em um curto momento. Mas na medida em que a liberdade irrestrita do vírus – além de gerar novas cepas preocupantes e que em alguma medida prejudicam os negócios dos capitais transnacionais – aprofunda a tendência da queda da taxa de lucro que já se agudizava em fins de 2019, e que adentra em 2020 derretendo os níveis de acumulação.

O processo global de centralização do capital é algo sem precedentes em todas as latitudes, a queda vertiginosa do ciclo da produção do capital faz com que predomine na reprodução capitalista a centralização em detrimento da concentração. Através da falência de pequenas e médias empresas e o desemprego que provêm, a queda do consumo, o capital monopolista se reforça e obtém uma massa gigantesca de capital via centralização de capitais [1].

Concomitantemente a queda da “atividade econômica” na linguagem dos economistas burgueses, o vírus começa a se diferenciar, pois quanto maior a taxa de infecção maior a possibilidade de adaptação e mutações, o Brasil se torna o celeiro das cepas de Covid no planeta. Vemos então países que começam a questionar e até a ameaçar recusar o recebimento de mercadorias brasileiras, por conta da possibilidade do contágio por novas variantes. O caso mais notório foi a China.

Em suma, a ala ideológica bolsonarista do governo, com seus ataques a China e cia, e setores da burguesia transnacional, latifundiária e bancária chegam a constatação de que as políticas do governo não estão tendo o efeito necessário para manter o ciclo do capital nacional do modo necessário, ainda que a centralização garanta a alguns setores uma maior apropriação do capital, isto significa sempre a apropriação de capital por uma parte da burguesia em detrimento de outras. Prova deste fato é a carta que reúne mais de 200 indivíduos, entre eles conhecidos banqueiros como os Setúbal e economistas como Armínio Fraga, além de representantes da FIESP [2]. Todos têm clara certeza que a pandemia prejudica as bases de “produção de riqueza”, isto é, da exploração continua e intensa da mais-valia absoluta e relativa e de que é impossível a continuidade de qualquer processo de produção capitalista na base apenas da centralização de capital, que nada mais é que a rapina recíproca dos capitais maiores contra os menores.

É nesse cenário e sob essa necessidade do capital que o centrão aprofunda o movimento para dentro do governo, que perde uma massa de seu grupo de apoio na sociedade civil, dados os efeitos da pandemia. Ao mesmo tempo Bolsonaro tenta como recurso utilizar o exército como constante carta na manga contra os representantes puro sangue da burguesia.  

É este conflito interno que produz o episódio da demissão do Ministro da Defesa, Gen. Fernando Azevedo. É bom que se compreenda aqui que qualquer golpismo das forças armadas, está hipotecada a uma forma antipopular, e profundamente “impessoal”, fundamentada sobretudo em uma ideia de dever moral, muito distinto da reedição da guerra fria sob a qual Bolsonaro justifica 1964.

E interiormente, a hierarquia pesa fundo nas disputas militares, de modo que qualquer golpe militar seria antes um golpe que retirasse Bolsonaro do poder do que o entronasse. Por isto, as forças armadas se comprometem com o governo, mas até os limites em que seja corporativamente vantajoso. E por isto também, qualquer aventura de Bolsonaro parece não possuir sustentação histórica alguma.

A crise em que é realizada a demissão do Gen. Fernando Azevedo e em seguida dos comandantes das forças armadas tem ai sua justificação. Bolsonaro busca fundamentar sua posição na areia movediça do “seu exército”. E este, como dissemos, não parece estar disposto ao golpismo por não ter nenhuma justificação histórica para tal. Nem internamente existe força social para tal, nem no campo internacional existe qualquer interesse imperialista que não esteja concretamente estabelecido nas democracias latino-americanas no momento presente.

Dessa forma, o que acontece é que o governo Bolsonaro ladra cada vez mais alto aos representantes da burguesia, enquanto essa vai destruindo a ala ideológica interna do governo, fato dos quais a demissão de Ernesto Araújo e a nomeação de Flávia Arruda para o ministério da secretaria de governo são os mais proeminentes. Mesmo as nomeações dos novos comandantes das forças armadas com o capacho Gen. Braga Neto no ministério da defesa não conseguiram dar a Bolsonaro o poder que este precisa contra a burguesia.

Entretanto, a mesma debilidade que hoje Bolsonaro parece ter, e este quanto mais acuado, mais alto ladra, parece ao mesmo tempo produzir nos representantes da burguesia o convencimento que este pode ser controlado, já que encurralado.

A nossa própria conta e risco, parece-nos que a CPI da Covid hoje não passa de mais uma moeda de troca, como tantas outras, a maioria sob as nádegas – antes de Rodrigo Maia e – agora de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco [3]. Que se em algum momento esboçou uma ameaça velada ao executivo, dizendo que os “remédios podiam ser amargos” caso o governo não respondesse com as medidas necessárias para mitigar a Covid.

Em suma, o que se processa no momento é mais uma tentativa moderadora por parte do centrão, que ao que tudo indica não conduzirá ao impeachment, ainda que essa cartada não esteja descartada, dependendo das condições internas. De outro lado, a moderação tem como principal ponto de apoio a tentativa de manter viva a agenda econômica, que Bolsonaro sempre constituiu em algum nível um problema para tal, na medida em que sabendo da falta de apoio interno para o golpismo, pensa nas eleições de 2022 e tentou moderar alguns pontos em certas reformas.

É nesse “espírito” que a reforma administrativa já foi eleita como pauta principal por Lira, para liberar uma massa maior de valor para a apropriação por parte dos capitais.

Para os comunistas, entretanto, ao longo do discurso sobre o “fascismo” bolsonarista, que serve e servirá de justificativa para o retorno de Lula e do moribundo programa democrático-popular, interessa neste momento combater as ilusões com o democratismo da esquerda, este cadáver moribundo.

Não existe um golpe em curso, e não existe tal possibilidade histórica no presente momento, assim como não existe fascismo no Brasil. Tal discurso só existe para aqueles que estão no espectro da esquerda no interior do espectro do capital. E por isto, qualquer frente ampla, qualquer ideia de que existe um candidato democrata superior que pode dar solução a presente situação, é fruto do velho politicismo que vê na política o fundamento do ser social. Nada poderia ser mais falso.

Bolsonaro é um mal operador político para a burguesia porque eleva seus interesses diretamente pessoais acima do particularismo dos interesses da acumulação capitalista de forma muito pronunciada e o que se processa hoje no país é a luta interna dos representantes da burguesia em dar curso de forma com que a tendência geral necessária predomine na política do governo. E assim nos parece a CPI da Covid, mais uma forma de alargar o poder dos representantes do capital, dos operadores políticos sobre o executivo.  

Por fim, para não cairmos em ilusões, a necessidade histórica que se levanta é a crítica radical da esquerda e dos horizontes limitados da democracia. Sem frente ampla, nem com a burguesia, nem com partidos de esquerda. O único sujeito histórico com potência de colocar este mundo abaixo e apontar o caminho do novo continua sendo o proletariado.

Notas

[1] Não é por um mero acaso que a Forbes registre no ano de 2021 um número recorde de novos bilionários e que só no Brasil sejam 20 novos na lista. <https://br.financas.yahoo.com/noticias/lista-bilionários-da-forbes-ganha-135859072.html>

[2] A BBC publicou a carta na integra. < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56485687>

[3] Ao todo, 1488 pessoas e mais de 500 organizações assinaram pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Foram enviados 115 documentos ao presidente da Câmara dos Deputados, sendo 63 pedidos originais, 7 aditamentos e 45 pedidos duplicados. Até agora, apenas 6 pedidos foram arquivados ou desconsiderados. Os outros 109 aguardam análise.

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Gostaríamos de indicar o livro “Ontologia, Dever e Valor em Lukács”, escrito por Mariana Andrade.

Resumo: Ontologia, dever e valor em Lukács, de Mariana Andrade, é uma importante contribuição para a compreensão de Para uma ontologia do ser social, a obra póstuma de Lukács e, também por isso, para o exame de alguns dos fundamentos decisivos na discussão contemporânea acerca de complexos de valores como a ética, a moral, os costumes, o Direito e assim sucessivamente.

Não é um exagero afirmar que, nos dias em que vivemos, predomina, em larguíssima medida, uma concepção acerca dos valores essencialmente idealista. A base desta concepção é, quase sempre, o senso comum burguês. Do fato de que nossos atos são, sempre, portadores de alguma escolha e que tais escolhas, sempre, são realizadas tendo em vista determinados valores, deduz-se que são os valores que determinam a história da humanidade. A sociedade atual teria a fisionomia que possui porque os indivíduos se orientam por valores individualistas, mesquinhos, concorrenciais, e assim por diante. Portanto, não seria de se admirar (em sendo esta tese verdadeira) que sejamos os “lobos dos próprios homens”.

Edições: 2016, impressa

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