19/11/2020
O mundo em que vivemos
As possibilidades da luta revolucionária são sempre determinadas pela situação histórica concreta. Concreta, aqui, não tanto no sentido a que Lenin se referia com a “análise concreta da situação concreta”, uma expressão em geral mais próxima da tática que da estratégia, mas no sentido histórico mais amplo.
O século 20 possui duas fases bem marcadas, quando se trata de explosões revolucionárias. A primeira, que termina em 1949 ao Exército Vermelho entrar em Pequim, corresponde ao período revolucionário mais longo e mais extenso, o único que envolveu os cinco continentes, da história humana. Após a Revolução Chinesa, os levantes foram perdendo força e potência histórica. Por mais significativas que tenham sido as experiências cubanas, argelinas, depois a vietnamita e, bem depois, a nicaraguense, nenhuma delas teve o impacto histórico da Revolução Russa ou da Revolução Chinesa. A partir da década de 1980, os levantes revolucionários não mais ocorreram. Isto não significa que não tenham ocorrido lutas e confrontos, que não tenham tido lugar choques políticos amplos e violentos. Mas eles não mais conduziram, como no passado, à destruição das velhas classes sociais e à constituição de novas classes dominantes. Quando foram vitoriosos, foi sempre a vitória de uma parcela da velha classe dominante sobre uma outra. Quase sempre foram derrotados.
Este o primeiro elemento importante para compreendermos nosso presente: as revoluções deixaram de estar na ordem do dia, a classe operária e os trabalhadores têm demonstrado uma pequena capacidade de luta revolucionária, suas lutas não têm ultrapassado os limites do “economicismo”, expressão empregada por Lenin em O que fazer?
O segundo elemento é também um processo histórico articulado ao que mencionamos acima. Seus primeiros movimentos podem ser identificados já no século 19. Não apenas, mas muito claramente, no movimento dos trabalhadores e operários na Alemanha e na Inglaterra. A transformação do capitalismo monopolista em concorrencial, ao redor da crise de 1870-1, ampliou o peso da mais-valia relativa na acumulação do capital. Além de alterar profundamente a própria dinâmica da reprodução do capital, dando início ao crescimento do capital financeiro que se converteria no monstruoso esquema especulativo dos nossos dias, além de ampliar exponencialmente os investimentos possíveis no desenvolvimento de tecnologia e na ampliação da produção e do consumo, impôs à classe operária o aprofundamento de uma sua cisão que já vinha desde sua origem. Os operários mais especializados, com maior poder aquisitivo e maior estabilidade no emprego, passaram a se distinguir crescentemente da massa de operários que se expandiu com a entrada do fordismo no cenário produtivo, depois com a Segunda Grande Guerra e, por fim, com o apogeu do Imperialismo na Europa e nos Estados Unidos entre 1945 e meados da década der 1970.
O “peão” passa a ser a base de uma classe operária que tem em seu cume uma “aristocracia”, que recebe melhores salários, possui melhores condições de vida e de trabalho, goza de maior estabilidade e – na medida em que avançamos pelo século 20 – participa cada vez mais do mercado de consumo de massas. Esta “aristocracia” se distingue ainda mais intensamente das massas proletárias que vão se formando na periferia do sistema, com a expansão mundo afora do imperialismo europeu, estadunidense e japonês.
São vários os mecanismos e mediações aqui atuantes. O mais básico e universal é relativamente simples de ser compreendido. A “aristocracia”, para ampliar seu poder aquisitivo, deseja produtos cada vez mais baratos. Isso pode ser conseguido se for aplicada uma política econômica que intensifique a exploração do restante da classe operária no país e no exterior, resultando assim em mercadorias de menor valor. A aristocracia operária, agora sem aspas, vai assumindo cada vez mais a aliança com a burguesia para garantir seus privilégios mais imediatos. Este é o solo social para o desenvolvimento e predomínio do reformismo no seio do movimento operário. Lenin é o primeiro pensador a articular o Imperialismo com o fenômeno do reformismo e da aristocracia operária europeia. Engels demonstrava todo desprezo que nutria por estes aristocratas ao denominá-los de “lugares tenentes da burguesia no seio do movimento operário”.
Na medida em que passamos pela década de 1970, as revoluções desaparecem (ou quase), tem início a crise estrutural do capital e a colaboração de classes da aristocracia operária se intensifica a cada ano que passa. Em não poucos países foi esta mesma aristocracia que se encarregou de comandar o Estado para a aplicação das políticas neoliberais (PT entre nós etc.). Isto tem duas consequências importantes para nossa discussão de hoje.
A primeira, é que as principais organizações partidárias e sindicais com tradição de luta operária se converteram em “cães de guarda do capital”, na expressão de um teórico francês. Não apenas não favorecem as lutas dos operários e trabalhadores, como ainda a sabotam e fazem de tudo para que sejam derrotadas, quando elas ocorrem. Esse é o preço que pagam para manter sua colaboração de classe.
A segunda consequência importante é que esta colaboração de classes tem sido fundamental para não haver nenhuma resistência mais significativa – as poucas que houveram, foram sufocadas – para a transferência de parte considerável do parque industrial dos países centrais para os periféricos. A transferência busca tanto fontes de energias e matérias primas, quanto uma força de trabalho de muito menor valor do que nos seus países de origem. A desindustrialização dos países capitalistas mais desenvolvidos é uma forte tendência desde a década de 1980 – em nosso país não conhecemos uma desindustrialização mas, desde pelo menos a década de 1990, assistimos à transferência das indústrias de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte para a regiões antes agrícolas, como o Nordeste, o Ceará, o norte do Paraná e assim por diante.
A classe operária, vai sendo desmontada nos centros mais tradicionais e vai sendo recriada em regiões mais atrasas a partir de uma massa trabalhadora mais pobre e para a qual um emprego na indústria, por pior que seja, é um avanço de vida. Nos centros em desindustrialização é um “cada um por si”, em luta pela manutenção do emprego. Na periferia, não há qualquer experiência de luta acumulada. Isto quebra a capacidade de luta da classe operária como um todo. Sequer a possibilidade de se articular a luta dos desempregados com os que ainda serão desempregados é aventada: trata-se sempre de garantir o emprego contra a concorrência daqueles que já perderam seu lugar de trabalho. Com a benção dos burocratas dos sindicatos e dos partidos de base operária.
Esta é a situação histórica, em traços muito gerais, em que vivemos. A classe operária, nacional e internacionalmente, tem demonstrado pouca potência revolucionária devido, por um lado, à colaboração de classes da aristocracia operária (com seus sindicatos e partidos) e, por outro lado, pela transformação da classe operária, sua realocação geográfica pela a desmontagem dos centros industriais do passado e sua substituição por novos centros, na periferia do sistema, com uma classe operária recente e inexperiente.
Antes de passarmos à discussão do cretinismo parlamentar e aos problemas da luta extra-parlamentar, que seja permitido apenas uma rápida observação. Esta paralisia da classe operária pode ser rompida a qualquer momento. A intensidade da crise, a concentração de renda, a decomposição da sociedade burguesa, por um lado, a crescente exploração a que está submetida a nova parcela de operários nas regiões periféricas do sistema, por outro, somado ao fato de que nunca houve uma classe operária mundial tão homogênea, que é não apenas explorada pelos mesmos capitais, com ainda não raramente trabalha com as mesmas máquinas, fabricando os mesmos produtos – tudo isso são fatores que auxiliarão uma retomada da luta operária revolucionária. Insistimos no peso da classe operária porque é ela o sujeito revolucionário, o que não quer dizer que a revolução proletária possa vencer sem o apoio de setores importantes dos demais assalariados.
O cretinismo parlamentar
Estamos em plenas eleições: novamente o voto útil canaliza parte do que se considera esquerda. Não poucos falam em um apoio crítico – como se deixasse de ser brutal equívoco pedir o voto para Boulos ou Paes (no Rio) pelo fato de se denominar o voto como “crítico”. Tal como todo 1 real é equivalente a todos os outros 1 reais, todo voto crítico é equivalente a todo outro voto. Vale lembrar: quando foi mesmo que as classes dominantes mais se enriqueceram e nós alcançamos a maior concentração de renda e riqueza de nossa história? Foi sob o “voto crítico” perfeito, pois recheado de virtudes reformistas: Lula e, depois, Dilma.
Esta expressão, “cretinismo parlamentar”, que Marx criou em o 18 Brumário é perfeita para caracterizar o que temos à nossa frente: após décadas de tentativas de se acumular forças para a revolução através da ocupação “dos espaços”, numa “guerra de posições” que prepararia o assalto aos céus, chegamos ao ponto em que hoje estamos. Não apenas não acumulamos nada, como perdemos o pouco que tínhamos. Os sindicatos foram cooptados e são hoje, como nunca, aparelhos para-estatais. O movimento popular, que ainda existia e não era muito, não vai além de comitês eleitorais que se recriam a cada 2 anos. O MST, virou uma extensão do PT e naufraga com ele. Boulos, caso eleito em São Paulo, será o fim do que ainda resta de combativo do MTST.
Não há outra constatação possível: os partidos que se propõem revolucionário se converteram em agremiações eleitoreiras. Todas as forças, energias e recursos são canalizados para a luta eleitoral. Mesmo o PSTU, de todos o mais combativo e abertamente socialista, não vai além da proposta de estatização dos meios de produção. Daqui há 2 anos, teremos mais do mesmo. Se nada se alterar na situação política, o mais do mesmo se prolongará por mais tempo. Nada virá, em se tratando de acumular de forças para a revolução, do cretinismo parlamentar.
O movimento extra-parlamentar
Contra o eleitoreirismo típico dos nossos “cretinos parlamentares” (ou seja, não apenas os representantes do capital eleitos, mas também as forças que acreditam nas eleições e delas participam), levanta-se a bandeira do movimento extra-parlamentar. A luta se decide nas fábricas, nas ruas, nas fazendas. Não no Parlamento. Algo justo não no terreno dos princípios porque uma verdade confirmada pela história. Se eleições alterassem algo de importante, o sistema do capital já as teria eliminado. São permitidas justamente porque não têm a potência de alterar algo de fundamental. Quando algo se transforma pela base de uma sociedade, o faz pela violência, nas fábricas, nas ruas e nas fazendas.
Contudo, os cretinos parlamentares (no sentido amplo acima) possuem um forte argumento. Cadê a luta extra-parlamentar? Onde ela surge? Nos raros momentos em que ela emerge, tende a rapidamente desaparecer ou, quase o mesmo, se converter em mais um movimento de cunho eleitoreiro. Quando ela brota, rapidamente perde sua potência. A causa fundamental disso é que as lutas mais radicais não conseguem, hoje, se generalizar. Terminam isoladas e são derrotadas. Isto, contudo, não passa de mera constatação. Constatar apenas, sabemos desde há muito, está longe de explicar.
O movimento extra-parlamentar, diferente da luta eleitoral, apenas pode ser feito por um movimento de massas – e este, diferente de um comitê eleitoral – não pode ser nem criado nem organizado de fora. Não pode ser outra coisa senão a explosão revolucionária de massas e massas de trabalhadores e operários. Enquanto este fenômeno social não ocorrer – e ele ocorre, lembremos Engels, como uma explosão social também incontrolável porque imprevisível – não há luta extra-parlamentar possível. Consequentemente, as propostas de se organizar a luta por fora do parlamento como crítica ao cretinismo parlamentar só pode demonstrar sua viabilidade prática nos períodos de profunda crise social ou de crise revolucionária. Nos dias de hoje, em que a classe operária vive este seu momento de paralisia, é uma proposta sem viabilidade prática direta.
Natural, portanto, que nas circunstâncias históricas presentes, nas quais a classe operária, no país e no mundo, momentaneamente expressa baixa capacidade de luta revolucionária, a crítica prática ao cretinismo parlamentar seja impossível, pois apenas a prática eleitoral é condizente com a ausência da classe operária como antagonista do capital.
O argumento dos cretinos parlamentares, portanto, é apenas aparentemente verdadeiro. Pois se não há, hoje, movimento extra-parlamentar, não significa que não haverá no futuro, mesmo no futuro próximo. Quanto isto ocorrer, a teoria e a propaganda revolucionária, a defesa da revolução como a única saída possível para a destruição da humanidade pelo capital, ganhará carne e osso, um novo sangue correrá em suas veias e nossos partidários do cretinismo parlamentar terminarão como o triste capítulo daqueles que traíram a revolução em nome de uma colaboração de classes.
Até lá, eles organizarão eleições e escolherão com qual parte da burguesia se aliarão. Os revolucionários defenderão o ideal revolucionário e desenvolverão a teoria da revolução: é hoje que as águas se dividem, não apenas no futuro.
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Notas sobre o Centralismo Democrático e a Organização que hoje necessitamos”, escrito por Sergio Lessa.
Resumo: Quando se trata da revolução, é necessário um partido? Se sim, um partido leninista, regido pelo centralismo democrático? Ou o partido seria a causa da derrota das revoluções até hoje, pois sempre o poder do partido substitui o poder dos trabalhadores e a revolução se converte em uma ditadura?
Essas questões apenas podem ser respondidas a partir da história: é deste pondo de partida que o texto de combate “Notas sobre o centralismo democrático e a organização que hoje necessitamos” procura tratar destas e outras questões relacionadas.
Edição: 2018, impressa