Coletivo Veredas Newsletter NL 29 – Vivemos dias incríveis!

NL 29 – Vivemos dias incríveis!

07/09/2021

Nós somos o que fazemos.
 
Nos tornamos pessoas, indivíduos, pelo resultado dos nossos atos, pela objetivação de nossas teleologias, não pela intenção nelas presente. É o que fazemos, não o que queremos ou desejamos fazer, que determina a essência do que somos enquanto pessoas.
 
Quando o que fazemos é predominantemente objetivar atos que reproduzem em escala global a desumanidade e, na escala individual, a nossa desumanidade pessoal, como seria concebível que a cada dia nossa existência não fosse essa destruição do humano? Quando se age desumanamente, é a desumanidade que se amplia, que se reproduz. Ao comprarmos leite na padaria – ou qualquer outra coisa – pelo mesmo ato destruímos a nós próprios e ao planeta. Essa é a essência do beco sem saída que o capital colocou a humanidade: algo será, inevitavelmente, destruído. Podemos escolher se será a humanidade ou o sistema do capital.
 
E isto torna nossos dias incríveis! A humanidade, e cada um de nós com ela, terá de escolher! Autenticamente!
 
“Entre duas alternativas, escolha sempre a terceira”
 
A cultura judaica é rica em provérbios. Também aquele: “Deus mede o sofrimento da humanidade contando as lágrimas das mulheres”, tem lá seu grau de veracidade. Quando a alternativa é entre o mal e o mal maior, entre o ruim e o péssimo; quando o único futuro possível é uma situação ainda pior do que a presente – é só então que o melhor surge no horizonte. Na história, é nesses momentos que a humanidade tem demonstrado sua autêntica capacidade humana, isto é, sua capacidade de criar o novo, destruir o velho e alcançar novos níveis de civilização.
 
Quando a sociabilidade se reproduz sem problemas, quando tudo está “nos eixos”, é quando a vida é a mais embolorada, medíocre, hipócrita. Pois nada é possível fora da moldura predominante: o novo é apenas o diferente, o exótico do mesmo, a sua essência é tão velha quanto conservadora. Ao esta situação se quebrar, as contradições ao alcançarem tal intensidade que a afirmação do presente só pode ser a negação do humano, aí é que a vida começa. Apenas então é que as possibilidades novas se impõem como necessidades absolutas.
 
Hoje, como nunca no modo de produção capitalista, o absoluto atinge a vida de todos nós, individual e coletivamente: se não destruirmos a mercadoria, esta destruirá a todos nós, como já o faz com o planeta e as pessoas. A crise ecológica apenas é comparável à epidemia de depressões e doenças afetivas que atinge os indivíduos. Há alguns poucos anos, a depressão já era a primeira causa da perda de dias de trabalho nos EUA, a segunda no Brasil. Deve ter piorado de lá para cá. Os suicídios superam os assassinatos e as vítimas das guerras, somados! Nunca o sofrimento humano foi tão intenso, nunca sobreviver se tornou algo tão desumano: só nos embrutecendo é que podemos não sucumbir (se é que se embrutecer já não é um modo de sucumbir).
 
A desumanidade – o que Marx denominava de Entfremdung, a alienação – tende a envolver a totalidade da vida. Mas, apenas, tende, pois sempre há um quantum de humanidade a se contrapor à insanidade do capital. Grandes amores vão se tornando crescentemente difíceis, analogamente a como a reprodução do capital vai se impossibilitando a cada dia. Claro, há infinitas mediações entre estes dois extremos da vida humana: mas esta conexão é real! O capital impõe tão gigantescos obstáculos ao encontro profundo, afetivo e sexual (o amor sexuado individual, nas palavras de Engels) entre nós, quanto obstaculiza a cada dia a reprodução dos seus próprios fundamentos. Este o resultado histórico irreversível da nossa submissão à mercadoria: a sociedade burguesa é aquela em que o humano não tem lugar!
 
Entre o ruim e o pior, há que se escolher a terceira alternativa: o melhor. Entre este ou aquele capitalismo, o comunismo (aquele de Marx e Engels, não o de Stalin). Para que Deus não mais precise contar as lágrimas das mulheres.
 
Sentimos e pensamos com a mesma cabeça
 
Jane Austen estava equivocada: razão e sensibilidade são partes articuladas da consciência humana. Apenas quando a racionalidade objetiva, social, é marcada pela desumanidade, é que a sensibilidade e a razão se contrapõem como antinômicas. Esta contraposição reside, não na essência de cada uma, mas na desumanidade do mundo.
 
Em assim sendo, pensamos o mundo tal como o sentimos e, similarmente, sentimos o mundo tal como pensamos. Há, aqui, evidentemente, limites muito claros. Por mais que sintamos, o Sol jamais vai nascer a oeste. Por mais que racionalizemos, a exploração do ser humano pelo ser humano será sempre uma alienação. Contudo, há também um largo campo intermediário, no qual razão e sensibilidade se articulam em uma concepção de mundo. Olhamos hoje o mesmo céu de Aristóteles e não temos a sensação de sermos o centro do Cosmos. Nossa concepção de mundo não apenas não necessita, como já superou cientificamente o geocentrismo. Vemos a mesma coisa que Aristóteles, mas sentimos algo distinto: a enormidade, talvez infinitude, do espaço.
 
Quando vivemos numa sociedade burguesa que nos faz lobos de nós próprios, que converte a totalidade social em uma arena em que todos batalham contra todos, a marca de nossos atos não pode deixar de ser a concorrência, o individualismo. A esfera do particular (a minha vida, a minha propriedade, os meus valores etc.) é tudo o que importa. Tal como agimos individualistamente, também sentimos “particularmente”: sabemos que há uma totalidade social, sabemos que há problemas que apenas podem ser superados pela humanidade no seu conjunto, sabemos que estamos destruindo o planeta habitável. Contudo, ainda que o saibamos, o que de fato importa não é o destino coletivo, universal, mas o meu destino particular, o meu cantinho do mundo, a minha propriedade. A minha situação particular comparece nos meus atos e nos meus pensamentos como se fosse a única realidade, em todo o caso, a única de fato importante. E assim agimos, assim sentimos e assim pensamos.
 
Não é à toa, portanto, que quando a crise atinge tal proporção universal, nós tipicamente apenas consigamos “enxergar” o nosso mundinho próprio, a nossa particularidade burguesa (aquela que nos faz adversários de todos os outros humanos). Nossa consciência se limita à particularidade alienada porque nossos atos são centrados na mesma particularidade, a de proprietários privados. Consciente e praticamente, somos particulares: não apreendemos a realidade em sua totalidade. Sabemos que ela existe; contudo, não podemos incorporá-la nos nossos atos, nem nos nossos sentimentos e, portanto, nem nos nossos raciocínios.
 
É este particularismo que nos conduz a uma situação aparentemente paradoxal. Mesmo entre aqueles que se propõem a destruir o capital através de uma revolução, muitos lamentam a crise atual e suas consequências. Não raramente lamentam a “desesperança” em que se encontram. Não deixa de ser curioso como, no passado, quando a sociedade capitalista “funcionava”, havia esperanças numa vida melhor; hoje, constamos a futilidade desta ilusão e, então – mesmo entre os revolucionários – mergulha-se em uma profunda “desesperança”! Desesperança, note bem, por estar ameaçado o caráter burguês das nossas existências, por terem sido estraçalhadas as ilusões burguesas!
 
Pensem: o capitalismo está em franca decadência — e até entre os revolucionários… lamenta-se porque a sociedade capitalista não mais funciona!? Ficamos deprimidos e “desesperançados”… porque não há esperanças à humanidade sob o capital?! O quanto isto tem de absurdo se evidencia ao invertermos a questão. O oposto seria verdadeiro? A felicidade, uma “vida esperançosa”, seria o capitalismo a todo o vapor? No frigir dos ovos, somos revolucionários ou partidários da vida burguesa?
 
Este particularismo é o que converte a percepção da crise, de possibilidade revolucionária, em fonte de “desesperança”. E isto é típico até mesmo do existencialismo mais progressista: uma radical porém impotente rebeldia que nada mais pode senão lamentar o destino e sentir comiseração de si próprio. O oposto não é somar revolta e esperança, isto não tem qualquer cabimento. O oposto é superar esta visão particularista e considerar também a totalidade social. Apreender as tendências históricas mais universais, o momento predominante da existência humana: brevemente, o capitalismo naufraga nos seus fundamentos e este é o pressuposto de uma crise revolucionária. O pressuposto não garante que virá a revolução, mas sem o pressuposto ela seria impossível!
 
O que a totalidade consubstancia, hoje, é uma crise de tal proporção que nunca a revolução comunista esteve tão próxima. Pode até ser que não ocorra, como argumentamos na newsletter do Coletivo Veredas de 17 de maio de 2021. Mas nunca ela esteve tão próxima. Nunca os revolucionários tiveram a história tão a nosso favor, nunca nossa concepção de mundo fez tanto sentido.
 
O que hoje fazemos pode ter, como nunca, peso e importância na história. Porque este é o momento, mais do que nunca, em que a possibilidade de dias melhores, essencialmente humanos, se faz presente (ainda que como necessidade, o patamar mais inicial de uma tendência histórica universal): nunca antes isto foi assim, nunca antes vivemos dias portadores de tantas, belas, grandes e humanas possibilidades! Se é para ficar neste patamar afetivo de ter ou não ter esperança, de estar mergulhado na “desesperança”, podem ter esta certeza: hoje, as esperanças do “melhor dos mundos” (Pangloss) estão mais próximas da realidade do que em qualquer momento no passado da humanidade. A enorme abundância e a não menos gigantesca generalização da miséria são os fundamentos últimos dessas possibilidades – como já argumentamos em várias oportunidades, depois de Marx, Engels, Lukács, Mészáros bem como uma longa série de revolucionários.
 
Esta circunstância nos força a ser, diferente do passado, autênticos. Não há mais lugar para meios-termos ou soluções amornadas! Nos destruiremos ou passaremos ao comunismo (aquela sociedade sem classes, sem Estado, sem casamento monogâmico e sem propriedade privada). Teremos de ser autenticamente burgueses ou comunistas! Este é o terreno em que as mais belas e humanas esperanças ganham solo social. Agora que nossas ações podem verdadeiramente contar!
 
Vivemos, pois, dias incríveis.
 
Somos o que fazemos. O que define o alpinista é o tamanho da montanha que escala. A história nos presenteou com a possibilidade de sermos testemunhas conscientes do fim do capitalismo, de sermos participantes da salvação da humanidade da voracidade do capital. Não há maior aventura humana do que enfrentar uma necessidade dessa ordem! Ela envolve a totalidade do que somos como humanos: tanto como razão, quanto como sensibilidade; tanto quanto indivíduos, quanto humanidade. Não há maior horizonte do que esse para o desenvolvimento das pessoas: nos impulsiona a superar muito de nossa particularidade alienada, de nossa visão de mundo particularista e alienada; nos impulsiona, na prática e na consciência, em direção à totalidade da humanidade.
 
O que mais um ser humano, nesta quadra histórica, poderia pedir a Clio, a deusa da história? Tá certo: que já estivéssemos no comunismo! Mas isso, também, já seria pedir o impossível: lá chegar sem as dores do parto de uma nova humanidade!
 
Ao fim e cabo, tudo pesado e ponderado, agora é que vale a pena viver!
 
Falando nisso…

Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?

Gostaríamos de indicar o livro “A alma burguesa na literatura”, escrito por Artur Bispo.
 
Resumo: Parodiando Shakespeare: será que se a burguesia não se chamasse burguesia, seria possível chamá-la de outra coisa, e sua alma possuiria uma configuração diferente? Será que se não chamássemos a burguesia de burguesia, ela continuaria a ser o que é? Será que ela teria uma alma diferenciada, se fosse denominada como uma “rapsódia” ou se chamasse uma “cortesã”? Infelizmente uma simples nomenclatura ou terminologia seria incapaz de oferecer uma natureza distinta a essa classe social determinada pelo lugar que ocupa na organização da produção, enquanto classe detentora do controle dos meios de produção. Apesar de todo o poder que o capital tem de metamorfosear, a burguesia não consegue esconder a sua verdadeira face e a sua verdadeira essencialidade. E para fazer isso, o autor deste livro vai recorrer a determinados romances a fim de revelar o modo de ser da burguesia tanto no período de transição do feudalismo para o capitalismo quanto no período áureo de desenvolvimento das relações essencialmente capitalistas.

Edições: 2017

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