O cotidiano da última quadra histórica é, sem que aqui se precise fazer muitas digressões, o mais dramático da história humana. Não pode haver dúvidas de que a tendência objetiva predominante na vida social é a que prevê a destruição da natureza necessária[1] e concomitantemente do ser social. Isto é, na medida em que o ser social tem como base necessária a natureza, a destruição desta é, per se, a destruição das condições da socialidade.
E novamente, não se pode ter dúvidas de que não temos mais 100 anos para resolver histórico-mundialmente os problemas societários derivados da dinâmica e lógica do sistema sócio-metabólico do capital. Resolução está que é atravessada pela necessidade de um ato organizado, consciente e com meios adequados a finalidade de superação do Capital, do Estado e da família monogâmica.
No alvorecer de tamanho drama societário, a crise não poderia deixar de ser uma crise da totalidade do mundo burguês, crise que atravessa e se refrata de modo cada vez mais intenso na decadência ideológica da burguesia. Que através da aristocracia operária dá o solo de sustentação para a crise ideológica da esquerda, de seus partidos e sindicatos.
Um tal processo deriva, como sabemos pela obra de Fernando Claudín, “A crise do movimento comunista”, do fato de que no desenvolvimento do movimento comunista do século XX, as tendências reformistas e stalinistas consolidaram um corpo ideológico e teórico, que com diferenças não desprezíveis entre si, fundamentaram sempre a manutenção das relações do capital – também de formas muito distintas entre si – sobre o comando de um Estado dito representante dos interesses do proletariado.
Essa concepção de que o socialismo é sobretudo uma transição socialista através do Estado que dura 50, 100 anos foi durante todo o século XX perdendo sua base de sustentação na medida que a URSS demonstrou a inviabilidade histórica de uma tal transição sobre tais bases. Contudo, como quem não tem cão, caça com gato, nossos “revolucionários” apologetas do socialismo Mickey mouse[2] agora se voltam para a China para a defesa da mesma tese.
Tese que pela própria natureza de seu objeto é não só mais frágil, mas ainda mais medíocre do ponto de vista teórico e pessoal por parte dos militantes que a defendem. Isto porque diferentemente da URSS, a China nem mesmo mascarou a exploração do trabalho sob forma de dominação política, resultado da expropriação dos expropriadores pelo Estado. A China não apenas mantém a propriedade privada dos meios de produção como a forma jurídica da relação capital-trabalho sob seu solo, como é o refúgio, nos últimos 20 anos, da valorização do capital social total elevando as taxas de lucro mundiais através da imensa força de trabalho que o capital acessou.
O desenvolvimento industrial chinês só é um mistério insondável para os mais cegos apologetas do socialismo Mickey mouse, assim como o fato de que o Estado chinês seja competente em administrar o capital e seus defeitos estruturais. Que o Estado capitalista, o Chinês incluso, precisa mediar economicamente a ruptura existente na sociedade do capital entre controle e produção, produção e distribuição e produção e consumo é algo patente em toda discussão de política econômica que os intelectuais burgueses fizeram durante todo o século XX. Alguém ai leu Keynes, por acaso?
Trata-se sempre de interferir ativamente por políticas estatais nestes defeitos estruturais insanáveis na medida em que o capital é necessariamente composto por forças centrífugas, antagonicamente estruturadas e opostas umas às outras sob a forma da concorrência constante.
Em suma, o Estado chinês vai sempre administrar o capital chinês e os interesses do desenvolvimento capitalista chinês. Que tal Estado exerça maior ou menor papel, se faça mais políticas públicas ou menos, que seja mais ou menos ávido para exportar seu próprio capital, isto não significa por nenhum segundo que o Estado chinês deixe de administrar as necessidades do capital chinês.
É triste notar a decadência que presenciamos na pena desses apologistas. Pois a qualquer marxista sério, seria um absurdo e um disparate discutir socialismo sem superação da propriedade privada, da relação capital – trabalho e da autodeterminação do trabalho associado juntamente a um processo de fenecimento do Estado e de suas funções políticas. É um tal fenecimento que demonstra justamente que a base fundamental das classes sociais desapareceu e já não há fundamento ontológico para que o Estado permaneça existindo.
Antes, o que presenciamos, é a tentativa de tornar o objetivo da luta revolucionária, o socialismo, em um método de administração do capital através do exemplo do Estado chinês. Transforma-se necessidade do capital em virtude da luta socialista. O fim do trabalho assalariado torna-se então, uma finalidade utópica e conjuntamente o fim do Estado um “desvio idealista” de Marx. De outro lado, a família monogâmica e a crise do indivíduo perante as limitações crescentes dessa sociabilidade frente as necessidades afetivas e do desenvolvimento da individuação a uma universalidade nem sequer passam pelos cérebros de nossos apologetas do “Socialismo chinês”.
A esfera da distribuição se tornou tudo. As relações de produção e a alienação do trabalho que dela provêm nada e já não se trata mesmo de ver o capital como força alienada que se sobrepõe ao corpo social e impõe a ela sua lógica interna destrutiva, que prevê a destruição completa da própria humanidade.
Para nossos apologetas, importa antes que quem destrua o planeta e a própria humanidade (esquecem eles que fazem parte dessa?) seja antes de tudo o capital “Socialista” chinês.
NOTAS:
[1] Pode-se facilmente conferir isto no desesperado relatório do IPCC publicado este ano. https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/
[2] Fazemos referência especificamente ao termo que Mészáros utiliza para quem pensa que socialismo é uma brincadeira administrativa que pode ser levada a cabo por qualquer partido nacional que chegue a direção do Estado.
NL31 – China: Socialismo Mouse Mickey no País das Maravilhas de Deng Xiaoping
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