02/04/2022
É muito comum ouvir-se de pais e mães da classe trabalhadora, de maneira geral, o seguinte relato sobre o futuro dos filhos: “Filho meu vai estudar e ser alguém na vida! Vai se formar. Terá, se Deus quiser, um destino diferente do meu.” Ainda que não abandonem a crença de que o divino opere na vida cotidiana, é no complexo educativo que acreditam estar a chave mestra para operar o milagre mundano de fazer com que seus filhos e filhas consigam algo distinto do que alcançaram na vida. Mesmo que ancorados religiosamente em entidades sobrenaturais, é a Escola e não a Igreja que designa a função de fazer de seus descendentes algo “superior” ao que acreditam ser.
Para que esse conjunto de questões seja adequadamente problematizado, é preciso considerar a articulação dialética entre elementos filosóficos, antropológicos, histórico-sócio-econômicos, entre outras esferas da vida humana. A presente redação, por sua proposta de informações em espaço reduzido, não tem a pretensão de abarcar uma tematização com tamanha envergadura.
Para efeito desta Newslatter, considera-se, como abstração razoável, que o mundo vive hoje um contexto de crise extrema. No alvorecer do século XXI, a vida humana experimenta índices de distribuição de renda jamais documentados pelo capitalismo. Quando redigimos estas páginas, o mundo atravessa a maior crise sanitária dos últimos cem anos. A pandemia do Covid 19 que desde finais de 2019 vem vitimando milhares de centenas de pessoas ao redor do mundo, mesmo que agrave severamente o quadro sócio-econômico, não pode ser responsabilizada pela crise que o mundo atravessa desde fins da década de 1960.
Segundo informa relatório recente da Oxfam, “a desigualdade econômica está fora de controle. Em 2019, os bilionários do mundo, que somavam apenas 2.153 indivíduos, detinham mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas”. O que o enorme esforço da Oxfam mostra é apenas a expressão fenomênica de uma problemática muito maior. Pela natureza reformista de suas pretensões, essa instituição, embora demonstre muito boa intenção política, não tem como atingir a origem do problema. A Oxfam esta impossibilitada de apontar que esse punhado de bilionários apenas existe pela existência maciça e concomitante de uma esmagadora maioria de pessoas que vivem na mais completa miséria. Ou seja, a riqueza capitalista esta inextrincavelmente vinculada à miséria. O que implica dizer que o capitalismo – mesmo que sob as melhores intenções políticas – não pode acabar com a pobreza, visto que seu interesse é aumentar o acúmulo da riqueza concentrada em pouquíssimas mãos.
O pesquisador húngaro István Mészáros, em livro já considerado clássico, denominou a crise atual de estrutural, pois é distinta das anteriores, que eram cíclicas. Assim categorizada pelo autor de crise estrutural do capital, ela se difere das cíclicas por apresentar a combinação de quatro perigosos pontos. 1) É universal. Ou seja, não se restringe a uma esfera particular, como por exemplo as áreas financeira ou comercial; 2) Tem alcance global. Isto é, em vez de ser limitada a um conjunto de países particulares, atinge efetivamente todos os rincões do planeta; 3) Sua escala de tempo é extensa. Diferentemente das crises cíclicas, que duravam um determinado tempo, a atual é contínua, permanente, não mais limitada a um período: já dura mais de meio século; e 4) Desdobra-se de modo rastejante, dado que requisita a ativação de uma complexa maquinaria empenhada em gerir a crise que, para ter êxito, procura deslocar ideologicamente as contradições nascidas no interior da problemática econômica para esferas fora da relação capital-trabalho.
É em decorrência desse resumido quadro que as políticas educacionais são consideradas arcaicas. Já que agora o aparato educativo se torna senil para atender ao que necessita o modo de produção capitalista em crise profunda; reivindica-se a modificação do papel da escola, ou para usar o termo predileto dos intelectuais de plantão, ressignifica-se a missão da escola, especialmente a pública e de modo destacado aquela que se direciona à formação da classe trabalhadores e seus filhos. Essa missão ressignificada deve se empenhar em preparar os indivíduos para a uma suposta nova realidade social.
Mas não é só de ressignificação que vive a sociologia da hora. Outras expressões são apanhadas para ajudar na tarefa ressignificadora. A resiliência é uma delas.
A palavra resiliência tem utilização primaria na física, onde é entendida como a capacidade de um corpo retomar a forma original depois de ser submetido a determinada elasticidade que o deforma. Usualmente, os estudiosos da dinâmica, para exemplificar o fenômeno da resiliência, citam o caso de uma mola, que mesmo após os exercícios de estica-encolhe em que é submetida por uma força externa, consegue manter suas propriedades mecânicas.
A porta de entrada da resiliência na sociologia da hora é inicialmente proposta pela psicologia. Aqui o termo sai da aplicação nos materiais e adentra ao comportamento humano. Sobre a origem etimológica da expressão, sabe-se que deriva do latim resiliens: saltar para trás. No inglês o vocábulo resilient remete à ideia de elasticidade, de rápida recuperação.
Foi na passagem da década de 1970 – não por acaso quando começa a crise estrutural do capital – para a seguinte que pesquisas estadunidenses e britânicas atentaram para a substituição do termo invulnerabilidade para resiliência. As investigações passaram a utilizar a palavra resiliência para definir o estado de pessoas que, mesmo submetidas a situações psicologicamente desfavoreces, permaneciam razoavelmente saudáveis. A psicologia, por sua vez, reivindica que sua aplicação do termo tem mais amplitude do que a da física. Justifica-se que, no caso dos comportamentos humanos a resiliência tem por objetivo fortificar pessoas fragilizados diante de adversidades.
Do modo como o entendimento psicológico de resiliência é defendido, pode-se aproximá-lo do sentido cotidiano do verbo pronominal conformar-se. Essa palavra significa não oferecer oposição, não apresentar resistência, ou seja, aceitar com resiliência e sem questionamentos, desde que consiga resistir às adversidades. Isto é, resignar-se perante a pobreza, diante do patriarcado, racismo, aceitar a ressignificação dada pela precarização-escolar-profissionalizante; renunciar à luta por uma sociedade emancipada, entre outros abandonos.
A palavra ressignificar, não obstante seu uso vulgar entre os textos universitários contemporâneos de língua portuguesa, não encontra definição em alguns dos principais dicionários desse idioma, a exemplo do Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa ou Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, entre outros. Encontramos apenas no Dicionário Online de Português a seguinte definição: “verbo transitivo direto. Atribuir um novo significado a; dar um sentido diferente a alguma coisa: aquele congresso ressignificou minhas convicções.” Quanto à etimologia, este dicionário assim define: “De re, com sentido de repetição, + significar, ter significado.” Curiosamente, esta definição é idêntica ao que se encontra no site (psicanaliseclinica.com/ressignificar). A Wikipedia, por sua vez, define que “ressignificação é o método utilizado em neurolinguística para fazer com que pessoas possam atribuir novo significado a acontecimentos através da mudança de sua visão.”
A sociologia vulgar encontrou em certas palavras uma frutífera ferramenta para alimentar a retórica do academicismo contemporâneo, pois ressignificou o idioma criando mistificadoramente o verbo ressignificar. Constroem-se ao redor desse lugar comum acadêmico-universitário determinada vulgaridade discursiva. Aqui brota a sugestiva retórica de que, nestes tempos de crise estrutural do capital, o que nos resta é aceitar, pois tudo é assim mesmo. À pessoa humana, já que não pode lutar por uma sociedade realmente justa, acata a possibilidade política de uma sociedade MAIS justa.
Já que é impossível ao capitalismo ofertar educação omnilateral a toda pessoa humana, independente de sua origem, sexo, cor, nacionalidade, aceita-se a precarização-escolar-profissionalizante, chamada hoje pomposamente de integral, como se ela fosse uma misericórdia estatal-divina.
E haja resiliência para aceitar resignadamente a ressignificação da vida!