04/08/2020
Há menos de dois meses, uma articulação de forças que ia do Supremo Tribunal Federal ao PSOL, passando por figuras como Fernando Henrique, Boulos, Marina Silva e o PT, não perdia oportunidade para apontar Bolsonaro e apoiadores como inimigos mortais da democracia. Não foram poucas forças e organizações que se dizem de esquerda julgaram por bem aderir a esta articulação. Lembremos das manifestações de rua pró e contra Bolsonaro e seu governo, as declarações ameaçadoras da área militar, as bravatas não menos impressionantes dos filhos de Bolsonaro, o confronto aberto com Bolsonaro de Doria e Witzel (governadores de São Paulo e Rio de Janeiro). Lembremos ainda da saída espetaculosa de Moro do governo, as denúncias de interferência de Bolsonaro na Política Federal. Por fim, lembremos ainda os manifestos que recolheram amplamente assinaturas, todos em defesa da democracia e todos denunciando os métodos e medidas fascistas do governo federal. Figuras como Paula Lavigne e Caetano Veloso vieram a público denunciar o governo. Articulistas de origem na esquerda, como Marco Aurélio Nogueira e Sergio Henriques, pregaram a defesa intransigente dos valores e práticas “republicanas” e “democráticas”. Estava na hora, diziam, de se colocar as divergências de lado e cerrar fileiras contra o “fascismo”. As investigações todas levavam a uma única conclusão: a proximidade, se não cumplicidade, dos Bolsonaros com os assassinatos de Marielle e do Capitão Adriano, a corrupta simbiose entre as milícias, o clã Bolsonaro e a corrupção. Tudo colocava no horizonte o impeachment de Bolsonaro.
Pois bem, passadas pouco mais de quatro semanas, o que restou desta defesa da democracia pelos democratas? Praticamente nada. As investigações estão em banho-maria, o processo de impeachment sequer foi instalado no Congresso. Nossos artistas e figuras como Fernando Henrique, Marina Silva e Rodrigo Maia estão calados. Os manifestos pela democracia? Com seus milhares de assinaturas? Onde estão eles? Witzel está encalacrado, lutando pela sua própria sobrevivência depois das denúncias de corrupção no seu governo e Doria, de ponta de lança entre os governadores no embate com Bolsonaro, colocou a viola no saco – ainda mais agora que Serra e Alckmin começam a ser alcançados pela Lava Jato.
O que ocorreu? Deixou Bolsonaro de ser um fascista que precisa ser extirpado do cenário político? Ou os democratas não eram os defensores da democracia que diziam ser?
O que aconteceu?
Na superfície mais superficial, aquela que as notícias dos jornais reportam, dois foram os principais movimentos que esvaziaram o impulso democrático anti-Bolsonaro.
O primeiro foi a prisão de Fabrício Queiroz, numa casa em Atibaia pertencente a Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro e com conexões com as milícias cariocas. A prisão de Queiroz e o mandato de prisão de sua esposa colocaram as hostes bolsonaristas em pânico. As conexões entre o crime organizado, as milícias e os Bolsonaros foram operadas por Queiroz e uma delação premiada poderia tornar inevitável o impeachment.
A prisão de Queiroz também parece ter afastado o núcleo militar do “núcleo ideológico” do governo. Até a prisão, os militares estavam “fechados” com Bolsonaro e viam na imprensa e no Supremo as causas principais da crise. Lembremos do artigo de Mourão no jornal o Estado de São Paulo de 15 de maio de 2020. Lá podemos ler que a “usurpação das prerrogativas do Poder Executivo” pelo Congresso e pelo Judiciário, somada a uma imprensa tendenciosa, eram as causas principais da crise. Essa postura foi abandonada. Os eventos narrados pela imprensa levam a crer que os militares passaram a fazer pressão que Bolsonaro recuasse.
O segundo movimento importante é que os bolsonarista passaram à defensiva. As preparativas para uma tentativa de golpe foram (aparentemente) interrompidas. As manifestações de rua em Brasília todo final de semana contra o Congresso e o Supremo, como que por mágica, desapareceram. Emissários foram enviados ao Congresso e ao Supremo. Bolsonaro não mais os atacaria se, em troca, o impeachment não prosseguisse e as investigações envolvendo a “família imperial” (como FHC caracterizou o clã Bolsonaro já no início do governo) não fossem adiante.
Como parte deste acordo, uma parte do governo deve ser entregue ao Centrão, o núcleo mais corrupto da corrupção no Congresso. A justificativa é que o governo necessita de uma base no Congresso para governar. A realidade é que Bolsonaro precisa de 172 votos no Congresso para evitar um impeachment. Carlos Bolsonaro, o principal cavaleiro do apocalipse encarregado da ofensiva cibernética dos bolsonarista, torna pública a possibilidade de sair da linha de frente e um “olavista” é afastado da presidência do Banco do Brasil.
Ou seja…
Os democratas fecharam um acordo com Bolsonaro.
Bolsonaro abandona as “ideias malucas” de um golpe de Estado e os democratas concordam que ele conclua o governo. Todos também concordam em disputar suas divergências nas urnas, tanto nas eleições deste ano quanto nas eleições para a Presidência em 2022. Não há mais necessidade da defesa da democracia contra Bolsonaro: Caetano, Paula Lavigne, Maitê Proença podem voltar para seus afazeres. Os manifestos podem ser engavetados. As investigações dos crimes cometidos pela “família imperial” podem ser colocadas em banho-maria. Queiróz ganha prisão domiciliar, junto com sua esposa; Frederick Wassef, o advogado, que dizia saber bastante e ter muito a contar, saiu de cena; FHC sai do noticiário e o impeachment parece que nunca foi levado a sério.
O próximo passo na implementação deste acordo está ocorrendo agora, nos nossos dias: a desmontagem da Lava Jato. Moro lamenta ter sido usado pelos bolsonaristas. De fato, para os ingênuos não há lugar na política.
Lembremos quem forma o Centrão, composto por uma série de pequenos e médios partidos, entre eles o MDB e o DEM. A liderança principal era o Rodrigo Maia (presidente da Câmara dos Deputados) e, secundariamente, Artur Lyra (do PP) e Davi Alcolumbre (presidente do Senado). A marca desde bloco heterogêneo é o que os analistas burgueses denominam de “fisiologismo”, isto é, a prática de vender seus votos em troca de propinas. É o que há de mais corrupto e bandido no Congresso, se é que há lá alguma figura que não seja ao menos conivente com a corrupção e com a bandidagem. No governo Dilma, foi este mesmo Centrão que vendeu caro seu apoio ao PT para, quando a situação se tornava insustentável, virar a casaca e promover uma nova rodada de venda de seus votos, agora pró-impeachment. Logo depois, foi a vez de Temer pagar muito dinheiro ao Centrão para que seu impeachment não fosse adiante, quando do escândalo da JBS.
Pois bem, é esse mesmo Centrão que se torna o aliado principal de Bolsonaro. Corruptos tradicionais e de estirpe declaram seu apoio ao governo e ganham cargos no governo federal. A BBC noticiou que os cargos em negociação controlam mais de 10 bilhões em verbas ainda não comprometidas no orçamento federal [1]. A luta contra a corrupção, uma das principais bandeiras de Bolsonaro, tem que ser enrolada e colocada no porão da casa, com a esperança de que seja esquecida.
O acordo com o Centrão possibilita também acabar com a Lava Jato, de preferência acabando também com a possibilidade de Moro se lançar candidato à Presidência em 2022 (no Supremo fala-se em uma lei que o tornaria inelegível por 8 anos). Nesta ofensiva contra a Lava Jato, o Centrão, os bolsonaristas e o Supremo contam também com o apoio da “esquerda”, desde do site Intercept, passando pelo PSOL (Ivan Valente está na linha de frente) e incluindo o PT.
Feito o acordo, mantida a possibilidade de Bolsonaro, desde que se comporte, terminar o seu mandado e se candidatar em 2022, a defesa “intransigente” dos valores e preceitos democráticos pode ser transigida e deixada de lado.
Que morram mais alguns milhares!
Esse newsletter está se convertendo em um rosário de recordações! Mas não há como escapar, quando o passado é fundamental para esclarecer o presente.
Lembram-se como, não há muito, alegava-se que uma das principais razões do impeachment era o descalabro promovido por Bolsonaro na luta contra a pandemia? De lá para cá, as mortes diminuíram? A estratégia do governo mudou? Passamos a contar com uma atuação efetiva e de qualidade por parte do governo federal? Evidentemente que não.
Na verdade, os democratas afirmavam, corretamente, que Bolsonaro nos custa milhares de vidas; mas apenas para fortalecer o movimento pelo impeachment e não para salvar vidas. Agora que não é mais preciso tirar Bolsonaro do Planalto, também deixou de ser necessário o impeachment para salvar vidas. Que morram mais alguns milhares!
Por que os democratas são … democratas?
No newsletter de 1 de julho, um mês atrás, apontávamos a responsabilidade dos setores democráticos na sobrevivência do núcleo repressivo da Ditadura Militar no seio do Estado. Narramos como, desde a Constituição de 1988, passando pelos governos FHC, Lula e Dilma, os democratas sempre atuaram na proteção e auxiliaram a sobrevivência do aparato de repressão desenvolvido sob a Ditatura. O acordo, jamais o confronto, é o que marca a relação entre os democratas e figuras como Bolsonaro e Mourão. Fernando Henrique, Lula e os democratas todos, apenas utilizaram das boas intenções de figuras como Caetano e Maitê Proença, da ingenuidade e estreiteza de horizonte de forças que se querem de esquerda, como o PCB, parcelas do PSOL, torcidas organizadas etc. para pressionar a “família imperial” a um acordo. Bolsonaro é um fascista a ser derrubado até que faça um acordo com a democracia! Feito o acordo, pode-se esquecer o “fascismo” de Bolsonaro.
Nem tudo são flores…
Nem tudo são flores para os bolsonaristas, contudo.
A crise econômica só piora e a pandemia, com avanços e recuos, não deixa de matar cada vez mais brasileiros. O desemprego abarca mais de 50% da força de trabalho. Todas as estatísticas mostram uma assustadora queda do nível de vida dos assalariados…
Uma parte importante, ainda que minoritária do Centrão, o MDB e o DEM, decidiu não compor a base do governo e rachou. Os mais capacitados estrategistas do Centrão, como Rodrigo Maia e Antônio Carlos Magalhães Neto saíram do acordo. Talvez por avaliarem que o governo está numa crise da qual não terá escapatória e melhor seria manter uma posição de independência. Talvez também por articulações envolvendo a eleição do novo presidente da Câmara em janeiro do ano que vem. Onde isso irá dar? Difícil dizer, há que se aguardar ao menos algumas semanas.
Mas, desde já, podemos tirar uma lição destas últimas semanas: quando se trata do confronto com o governo Bolsonaro, os primeiros traidores são os democratas. São eles os primeiros dispostos a abandonar a luta e fazer um acordo com a direita. Vêm fazendo isso desde a Constituição de 1988. Estão fazendo agora, novamente, na nossa cara.
Na luta pela liberdade, nós não devemos contar com a aliança com os democratas; quem conta com uma aliança com os democratas é a extrema direita. Bolsonaro “usou” Moro, assim como os democratas “usaram” aqueles que, acreditando estarem lutando contra Bolsonaro, se colocaram incondicionalmente ao lado de FHC, Ciro Gomes, Lula, Marina e Boulos.
Isso não é tudo…
Há, ainda, o mais importante a ser explicado: por que nossos democratas são tão propensos a acordos com a direita, mesmo a mais extremada? Por que forças reformistas tradicionais como o PC do B, o PCB, o PSOL, o PT e outras organizações menores tratam os democratas como aliados em potencial e, a esquerda revolucionária, como inimiga de classe? Trataremos disso no primeiro newsletter de setembro.
Referências externas
[1] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52466624
Falando nisso…
Você conhece os livros publicados pelo Coletivo Veredas?
Gostaríamos de indicar o livro “Estado, política social e controle do capital”, escrito por Milena Santos.
Sobre a autora: Bacharel em Serviço Social (UFAL), Mestra em Serviço Social (UFAL) e doutoranda em Serviço Social, no Programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Resumo: O livro aborda o Estado e a Política Social e tem como objetivo apresentar como a política social pode ser considerada uma das formas de controle do sistema sociometabólico do capital através da atuação do Estado. Para tanto, baseia-se na análise marxiana dos fundamentos ontológicos do Estado (natureza, desenvolvimento e função social). Analisa a ordem de reprodução do capital e o Estado, como uma estrutura de comando político direcionada a defender os interesses do capital, complementando-o de forma essencial na manutenção da ordem do capital. Trata ainda da “questão social” e as origens das políticas sociais, captando seus fundamentos ontológicos, analisando o processo de consolidação durante o período monopolista do capitalismo. Também apresenta as formas de enfrentamento da crise estrutural do capital pelo Estado e, principalmente, quais as decorrências dos ajustes estruturais para a política social.
Edições:
2016, impressa – ESGOTADA
2020: E-book