Se aproxima mais um pleito eleitoral e com isso ressurgem velhos questionamentos, como por exemplo, sobre se votar é um ato realmente democrático, se a democracia representativa funciona ou se conseguimos realmente mudar alguma coisa através do sufrágio. Mas no cenário atual brasileiro, convenhamos, mais caótico que os anteriores e com um envolvimento fanatizado de muitas denominações religiosas, um outro tipo de dúvida tem vindo à tona, esta diz respeito ao caráter cristão ou não de determinado candidato e/ou de sua proposta política.
Já adiantando, independente do candidato, o processo eleitoral pode até ser democrático, mas ele não é cristão. Antes de prosseguir destaca-se que o objetivo não é defender um processo de escolha “cristão” em contraposição ao atual, como se apenas pelo fato de ter alinhamento com preceitos do cristianismo lhe conferisse uma superioridade. O intento é apenas alertar que, se você é cristão e pensa em votar nessas eleições em um ou outro candidato por julgar que é mais cristão que o outro, saiba que só em votar você já está corroborando um processo que envergonha o cristianismo – ou pelos deveria.Para que isso fique mais claro, permita-se relembrar um pouco sobre a gênese do cristianismo.
Grosso modo, o berço do cristianiasmo é o Oriente Próximo, mas se levarmos em conta o nascimento de Jesus, Nazaré, ao norte de Jerusalém, é o lugar geográfico específico no qual, segundo o próprio cristianismo, veio ao mundo o filho de Deus. Foi próximo daquela região que em 70 (d.C) aconteceu o famoso cerco à fortaleza de Massada pelo Império Romano, narrado de corpo presente por Flavius Josephus. Aliás, a maior vertente religiosa do mundo atualmente foi gestada no tempo que vai do auge do Império Romano ao seu declínio total.
É importante destacar que nesse contexto, a produção da riqueza material era realizada pelo trabalho escravo. Kautsky, citando Horácio, diz que, em uma de suas sátiras o mesmo afirma que seriam necessários pelo menos dez escravos para que um homem tivesse o mínimo de conforto. Esse número, entretanto, poderia chegar facilmente na casa dos milhares em algumas famílias.
O próprio José – tio-avô de Moisés –, filho de Jacó e Raquel, de acordo com a Bíblia, foi vendido no Egito como escravo pelo equivalente a 18 marcos. Já o Cristo, viveu precisamente na época do reinado de Tibério, momento em que de fato, o Império Romano atingia o ápice de suas conquistas e expansão. A partir desse ponto, como lembra Kautsky, o esforço seria para manter essa grandiosidade, o que se mostrou, ao fim e por vários motivos, inviável.
Roma com toda sua opulência era politeísta, o Estado tinha seus deuses oficiais e os cidadãos romanos em sua particularidade tinham os Lares e os Penates. Mas justamente quando o Império degringolava, não conseguindo mais manter os exércitos para seguir pilhando outros povos, sobretudo por conta do modelo de produção que também se mostrava exaurido, é que ganha repercussão os ideais cristãos.
Entretanto, as ideias cristãs não surgem entre as elites do vasto Império Romano, ao contrário, vêm dos povos mais simples, à margem de toda a riqueza e glória que gozavam as classes dominantes naquela quadra histórica. O acúmulo entre os abastados era tanto que sem terem mais nada importante com o que empregassem suas fortunas, esbanjavam-na com o que de mais fútil se possa imaginar.
É em oposição a essa elite opulenta e perversa que o movimento cristão em seus primórdios surge e avoluma-se, pondo-se intencionalmente – com as devidas mediações – contra aquele modelo societário em decadência. Desse modo, o cristianismo primitivo é claramente contrário aos poderosos de seu tempo, disseminando-se entre os explorados.
Os próprios evangelhos traduzem a posição firme das primeiras comunidades cristãs – e do próprio Jesus – contra os ricos e em defesa dos pobres. Em Lucas, por exemplo, está escrito que os pobres serão bem-aventurados, enquanto aos ricos restará lamento e choro. Além disso, a Bíblia também aponta o caráter comunista daquelas comunidades, pois até os apóstolos de Cristo tinham bens comuns, não existindo propriedades particulares entre eles, assim como em outros grupos cristãos daquele contexto.
Só alguns séculos depois, quando pessoas ricas e poderosas se aproximam do cristianismo, incluindo Roma, que adere ao movimento por estratégia política, é que os evangelhos vão ficando mais brandos quando direcionam-se à ordem estabelecida e à classe dominante. Os pobres, passam a ser “pobres de espírito”.
Bem, se Jesus e os primeiros cristãos sempre estiveram ao lado dos pobres e explorados em oposição aos poderosos, parece que enquanto cristão, promover ou apoiar pessoas superpoderosas que subjugam as demais em prol de seus interesses particulares e mesquinhos, é bastante contraditório.
Ora! Mas não deveriam os cristãos, mesmo assim, defender a democracia? Considerando a maculada história dessa velha figura, a resposta é não.A Grécia antiga é o que geralmente se considera como berço da democracia, como algo esplêndido para o qual se deve sempre olhar quase que com uma certa nostalgia, um exemplo a ser perseguido. O problema é que na democracia grega nem todos eram “cidadãos”, parte significante da população, não por coincidência os não abastados, não gozavam das benéfices daquela áurea sociedade.
A Grécia Antiga, além disso, era assentada sobre o trabalho escravo. Era daí que provinha a riqueza da qual gozava a elite grega. A democracia, portanto, já em seu berço tem a estranhíssima característica de privilegiar uns poucos afortunados em detrimento de uma maioria que é vilipendiada e coisificada ao extremo.
Já a democracia com suas vestes modernas, debuta com a superação do feudalismo pelo capitalismo, e desde então é entoada como um mantra místico que tudo resolve e através do qual tudo progride positivamente. É tanto que hoje, abrir a boca e dizer que é contra a democracia soa aos ouvidos da maioria das pessoas quase como uma blasfêmia a esse sagrado manto. Pode-se tudo, menos ser contra a democracia.
Mas essa nossa democracia é parida pela burguesia, é sua filha dileta. Como boa prole, está sempre ao auxílio de seus genitores. Por outro lado, uma boa mãe é capaz de tudo pela sua descendência. Em outras palavras, como produto da burguesia, a democracia está sempre ao seu serviço, enquanto aquela é a primeira a fazer todo e qualquer esforço para mantê-la.
Apenas em situações particulares, nas quais o atraso ofusca por um momento as elites ávidas por mais lucro, é que essas chegam a cogitar a possibilidade, ainda que de longe, de algum modelo autoritário. Já que manter os trabalhadores numa falsa sensação de que, através da democracia, podem decidir o rumo do país e que são livres para serem o que quiserem, é muito mais lucrativo para a burguesia, sem contar que evita levantes populares e escalada de tensões entre o Estado e as massas.
Para provar esse ponto, atente-se para o que se conseguiu com a redemocratização do Brasil, principalmente nos últimos governos – sobretudo os petistas –, sobre os quais muitos celebram um avanço. Tudo que logrou-se nesses “tempos áureos” foi que algumas milhões de pessoas deixassem de ser miseráveis para serem pobres, e os que não puderam sair da miséria real, o Estado “democrático” os tirou imaginariamente, os chamando agora de “pessoas em situação de vulnerabilidade social”.
Enquanto isso, vale lembrar que segundo a XP, em 2021, bem no meio da pior pandemia dos últimos séculos, os bancos no Brasil alcançaram os mais altos lucros desde 2006. É para isso que serve a democracia, para tornar os ricos – aqueles contra os quais os primeiros cristãos se posicionaram – e poderosos ainda mais abastados e poderosos, enquanto uma imensidão de trabalhadores deve se contentar com serem não mais miseráveis, mas apenas pobres, ou, para soar mais elegante: pessoas socialmente vulneráveis.
Mas, “está tudo bem”, pois para essa camada da população os organismos internacionais têm a solução perfeita, como o exemplo da FAO-ONU: inserir insetos na alimentação das pessoas em estado de “insegurança alimentar”. Enquanto Jesus, segundo as Escrituras, multiplicava os alimentos para que todos se sentissem saciados, a democracia que valida-se pelo voto nos oferece insetos.
Antes que surja o questionamento, é óbvio que um regime totalitário é menos desejado que a tal democracia, esta sem sombra de dúvida representa um avanço. Mas a questão é outra, trata-se do fato de que a democracia apenas corrobora a exploração do ser humano, seu rebaixamento a uma situação humilhante e quase animalesca, privando-o das suas reais potencialidades. Tudo isso, para favorecer as elites políticas e econômicas.
A democracia atual, enquanto instrumento do capitalismo, faz do ser humano – criado à imagem e semelhança de Deus – uma coisa bruta, um objeto que só tem utilidade porquanto puder gerar riqueza para os poderosos. Não há nada de cristão nisso.
Nesse contexto todo, o voto ou mesmo as próprias eleições são como a cereja da democracia. É através delas que o Estado pretende fazer crer que o povo tem nas mãos o poder de mudar tudo que não esteja satisfatório no país e em nossas regiões. A realidade, porém, contradiz essa falácia. Eleições após eleições a mesma história se repete, políticos milionários sedentos por mais dinheiro e mais poder para conseguir mais riquezas, vão se alternando nos cargos eletivos e reproduzindo a mesma dura e cruel realidade de desumanização das classes dominadas.
As eleições fecham com chave de ouro a balela da democracia, servem apenas para que milionários e poderosos, Herodes e “Tibérios” de nossos tempos, se alternem entre si, servindo aos mesmos interesses mesquinhos, como é próprio da sociabilidade atual. Quanto aos explorados, trabalhadores e trabalhadoras, resta apenas continuar num sistema que, como sinalizou Marx e Engels, é tão vil que transforma em mercadoria até a inocência de uma criança.
As eleições, o voto, serve justamente para isso, para dar continuidade a essa nefasta e desumana realidade.
Dito isso, não resta dúvida de que se o próprio cristianismo surge em um contexto de contraposição aos poderosos e estando sempre em defesa dos explorados, um processo que legitima a exploração e a desumanização dos “filhos de Deus” pela classe dominante atual é completamente anti-cristão. Como dito, as primeiras comunidades cristãs viviam sob uma organização comunista, onde tudo era de todos e ninguém era mais ou menos possuidor que ninguém.
As eleições, pelo contrário, servem para garantir a continuidade de um Estado que nada mais faz do que atender aos interesses dos ricos, garantindo que suas fortunas aumentem tanto quanto possível, às custas de trabalhadores pobres cujo salário mal os mantém vivos. Assim, qualquer cristão que tiver qualquer consideração pelos precursores do cristianismo, não compactua com o processo eleitoreiro.
Em síntese, as eleições não são cristãs, são avessas aos preceitos mais básicos e primeiros do cristianismo, elas reforçam. Resta, portanto, ao cristão autêntico, rejeitar e repudiar as eleições, não participando de tal processo e, quando isso não for possível, pelo menos votar nulo, não ajudando o capitalismo e seus asseclas se perpetuarem.