Termino este texto no sábado, véspera das eleições. Algumas coisas já estão claras: Bolsonaro venceu, mesmo que perca nas urnas. Os petistas, Lula à frente, se tornaram “bolsonaristas lights”: abandonaram todas as pautas progressistas do seu discurso passado para buscar votos da “esquerda bolsonarista”. A história, como sempre, mais cedo do que tarde cobra seu preço: o acordo prático, a aliança política de década e meia dos governos petistas com o núcleo duro da repressão encastoado no Estado, conduziu a um discurso que é cada vez mais próximo ao bolsonarismo. Isto tem uma razão de ser: o petismo e o bolsonarismo navegam na mesma onda conservadora, na mesma pulsão ideológica do presente. Ao invés de a questionarem, lutam entre si para ver quem será, dela, a expressão mais acabada.
O verão de 1967
Hegel, para expor a força das ideias (do que, depois, costumamos chamar de ideologia) na história, cunhou o termo Zeitgeist. O “espírito do tempo”. Fazia todo sentido, já que ele compreendia a evolução humana como a passagem de um conceito de mundo a outro. Passagem que se daria no Espírito — e conceitos que seriam cunhados pelo Espírito — a partir das vivências e aprendizados coletivos, universais. De onde viria, contudo, tal Geist?
Algumas décadas depois, o mistério do Geist de Hegel se dissolveria: o “ser determina a consciência”. Como o ser social é fundado pelo trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas é o que predomina na evolução do ser humano, a força que Hegel enxergava no Zeitgeist vinha do fato de esta ou aquela concepção de mundo corresponder mais aproximadamente que outras às necessidades e possibilidades históricas postas pelo desenvolvimento do gênero humano.
Isto explica o verão de 1967.
A explosão em São Francisco, California, dos ideais hippies (paz e amor, acima de tudo) expressava tanto as necessidades quanto as possibilidades de uma humanidade com sua capacidade produtiva significativamente elevada por décadas de fordismo e pela sociedade de consumo de massas. Não havia mais nenhuma razão para se continuar a viver no estilo monogâmico-burguês (Father knows best, a série que encarnava o conservadorismo de então), nem numa sociedade em que se trabalha 40 horas por semana para sermos, todos, infelizes. Janis Joplin cantava (Ball and chain) a desrazão de se viver burguesemente: metade está infeliz e a outra metade, também.
O ventos da mudança sopravam por todos os lados (Bob Dylan) e a vitória da liberdade se anunciava (We shall overcome, de Pete Seeger, no Brasil, A viola e o violeiro de Sidnei Miller e Pra não dizer que não falei de flores, de Vandré): amor livre, não mais famílias monogâmicas, liberdade sexual contra o patriarcalismo, aborto e pílulas para todos e uma nova organização social: comunidades.
Foi então que símbolos seculares do patriarcalismo burguês refluiram: o casamento tornou-se legalmente dissolúvel, a opressão da mulher tornou-se tema público, dinheiro e felicidade eram tido por icompatíveis. All you need is love, cantavam os Beatles na mesma Inglaterra que, no ano de 1967, conheceu greves “selvagens” que ocuparam fábricas e aturam por fora do sindicalismo de Estado, oficial. 1968 viu as barricadas em Paris e as greves operárias na França, as maiores desde as históricas de 1936. Chicago viu a convenção democrata se tornar um confronto generalizado entre as forças conservadoras do Partido Democrata protegidos pela polícia e os “ventos de transformação”. O movimento contra a Guerra do Vietnan se convertia em mundial: bandeiras do Vietnan do Norte apareciam em manifestações e a bandeira americana era queimada mundo a fora. Na Alemanha Ocidental a Rote Armee Fraktion (RAF) atacava a OTAN. Cuba e Guevara tentavam levar a guerrilha à Bolívia para, desta base, fazer uma revolução continental, latino-americana. As guerrilhas se espalhavam pela África. Na América Latina, o movimento estudantil e as revoltas também estimulavam o surgimento de movimentos revolucionários e organizações guerrilheiras. No Brasil, sob a Ditadura Civil-Militar, as coisas também esquentaram.
Este Zeitgeist se expressava, claro está, na vida cotidiana e mesmo nas coisas aparentemente mais banais. Toda uma nova estética foi surgindo. Por si só, isto diz pouco. Por vezes, contudo, um detalhe expressa algo essencial do todo. Neste caso, um espírito do tempo de revolta, de ventos que trariam mudanças, da ousadia de se ir além do possível que se expressava em cabelos longos, liberdade sexual e recusa de identificar dinheiro e felicidade (o musical Hair). Camisetas, jeans, cabelos longos para homens e mulheres, vida em comunidade e desprezo ao “ter” (Steal this book, de Abe Hoffman): estas as marcas de um novo tempo. Terno era a vestimenta dos conservadores, dos burgueses, dos políticos e dos burocratas.
Nossos dias são tão distintos, que vale a pena relembrar para os que não viveram aquele verão de 1967: alguma solidariedade envolvia a todos. A violência de uma sociedade burguesa em desagregação ainda não se generalizara: viajávamos de carona, dormíamos em barracas, dividíamos o que tínhamos para comer. A vida era muito mais bela. O futuro, ainda mais interessante. Um exemplo pessoal, apenas para assinalar a diferença: não tinha 17 anos quando fui de carona até Filadelfia, em meio ao Chaco Paraguaio e voltei para casa, em Campinas, São Paulo, sem ter um centavo no bolso, pedindo comida, água e banho por onde passava. Sem qualquer perigo ou ameaça de perigo: a vida tinha outra qualidade. Nas fábricas, também: as greves uniam operários e os separavam das personificações todas do capital. Nas escolas e universidades, a revolta estava presente, contra o currículo e também contra os “micro-poderes”… Os conservadores tinham razão de entrar em pânico.
Reagan
Como o “ser determina a consciência”, a impotência dessa generosa e bela revolta se chocou com a crise estrutural do capital que traria, em poucos anos, um desemprego brutal graças ao toyotismo e à “reestruturação produtiva”. A maior parte da produção do capital foi transferida para os países asiáticos, nos quais a docilidade e o menor valor da força de trabalho garantem, ainda hoje, lucros mais elevados. A carência de empregos, a perspectiva de uma crise econômica infindável, a insegurança pessoal quanto ao futuro e a correspondente crise social zombaram dos ideais de construção coletiva de um futuro livre de opressões. O individualismo entrou em cena nos mesmos anos em que Reagan e Thatcher inauguraram a vitória política do neoliberalismo, que o bloco soviético se dissolveu, principalmente, pelas suas próprias contradições internas e em que a intensidade da destruição do planeta deu um salto.
O Zeitgeist do verão de 1967 se mostrou impotente ante todas essas forças. Pressionada pela crise e controlada pela aristocracia operária, o operariado e os trabalhadores não entraram na luta nem aprofundaram suas bandeiras de luta.
Foi então que o conservadorismo foi recuperando o espaço perdido. Se os sonhos coletivos de um futuro sem opressões fracassaram — entre outras razões sérias — também pelo fato de se restringir a uma “pauta de costumes” (que raramente tocava no fundamental da opressão: a propriedade privada, a exploração do ser humano pelo ser humano), o conservadorismo que se renovava faria o mesmo. Tinha, e tem ainda hoje, por pressuposto que não há futuro à humanidade senão o capital: garantida ideologicamente a perenidade da existência burguesa, o conservadorismo dedica-se a extrair desta perenidade as consequências para a concepção de mundo e, daí, para a “esfera dos costumes”. Por vezes, detalhes são apenas detalhes. Outras vezes, não. Uma renovada estética conservadora volta a ser expressão do novo “espírito do tempo”. O terno volta a ser uma vestimenta “de respeito”, os jovens voltam a casar, mesmo na Igreja, ateus batizam seus filhos (“é o uso”, alega-se) revaloriza-se a virgindade, reafirma-se o patriarcalismo (mesmo que modernizado, aquele patriarcalismo que apoia a Lei Maria da Penha, que busca a legalização das uniões homossexuais etc.) e age-se como se ser feliz fosse ter dinheiro. De Hair a 9 e 1/2 semanas de amor: cruzou-se um oceano em termos de concepção de mundo e em termos das estéticas correspondentes.
Tal como nos anos de 1950, a busca por status e pela ascensão social são as marcas que acompanham o neoconservadorismo. Agora, contudo, com as marcas da crise estrutural. De hippies a yuppies: se os primeiros não questionaram o capital, apenas os “costumes”, os yupies reafirmam o capital e desta reafirmação desenvolvem os “costumes” adequados. Da vestimenta (vejam a cena do closet em 9 e1/2 semanas de amor) ao patriarcalismo, do combate ao direito ao aborto à afirmação das crenças religiosas, da opressão da maioria à “liberdade” apenas para aqueles que “vencem”. A afirmação ostentatória da opulência dos “de cima” é articulada à defesa das cotas “aos de baixo”. O direito de possuir iates e jatinhos é idêntico à liberdade de gerar uma quantidade, incompatível com o planeta, de poluição e lixo. A democracia torna-se cada vez mais conservadora e autoritária, a “agenda” do dia se limita à pauta dos costumes… pouco mais do que isso.
De expressão de uma concepção aristocrática de mundo, a defesa dos privilégios (o direito de alguns versus a opressão dos muitos) torna-se bandeira democrática: as minorias, ao invés da maioria, devem ser atendidas. O politicamente correto faz sua entrada em cena: “todes” deve substituir “todos”, etc. etc. Contentamo-nos em alterar o modo de falar deixando intacto o modo de viver.
O fake
Aqui, também, a determinação da consciência pelo ser se faz sentir. A crise estrutural do capital, pela mesma mediação que torna cada vez mais desumana, destruidora do humano, a reprodução do capital, faz também os valores burgueses cada vez mais fakes e hipócritas. O “politicamente correto” torna-se o “discurso único”, as cotas e a defesa das minorias substituem a luta pelos direitos de todos, os símbolos do conservadorismo vão penetrando em todos os poros da vida cotidiana: casa-se, jura-se eternidade e contempla-se o divórcio; batiza-se, mesmo que não seja cristão na vida cotidiana; consome-se perdulariamente pela mesma mão que se diz preocupada com o planeta, intensifica-se o individualismo mas se o reveste de “preocupações sociais” — e, ao fim e ao cabo, somos cada vez mais lobos de nós próprios.
A necessidade por gerar mais-valia onde for possível mercantiliza tudo o que pode ser mercantilizado — o Zeitgeist conservador avalia isto como positivo. Da educação à religião, da saúde aos “serviços” de alimentação e lazer, da vida familiar às cerimônias como o “mijo da criança” (o chá do bebê), aniversários, funerais, casamentos e batismos. Cada vez mais é “chique” — e demonstra status — festividades organizadas por profissionais que “sabem como ordenar a espontaneidade”. O consumo perdulário, pressuposto para a manutenção do sistema do capital, faz parte da essência destas festividades: quanto mais se jogar fora, quanto mais lixo gerar, quanto mais força de trabalho desperdiçar, maior a felicidade presumida daqueles que pagam pela festividade. Do outro lado, milhares de humanos obrigados a um trabalho abjeto para produzir o lixo destinado a expressar o status de “vencedores”, a glória individual de “quem pode” se comportar perdulariamente. A felicidade de alguns tem de ser a vida infeliz e sem razão de muitos. Age-se como se a felicidade estivesse em se desconectar da miséria universal e em cultivar um universo próprio, individual. O importante é se “descolar” do entorno e cultivar um “mundinho todo seu”. O individualismo burguês em seu momento de podridão.
O espírito do tempo conservador, a ideologia da burguesia decadente, penetra em todos os poros. Mesmo nas relações mais íntimas, pessoais e familiares. As individualidades, em decomposição afetiva, deprimidas em um grau antes desconhecido, se agarram a qualquer “fio de esperança”.
Por que, neste contexto, seria de se estranhar a exigência de que os convidados a uma festa comparecem com uma dada vestimenta? Porque estranhar que esta vestimenta, não por acaso, seja aquela peculiar da estética conservadora, o terno e o traje de gala? Neste universo, o revival do conservadorismo, agora fake, tem que trazer de volta a estética conservadora como se fosse uma novidade. Tal como em Father knows best, a aparência e a exibição de riqueza são o que conta: as pessoas são apenas suportes das vestimentas que expressam o status, a ascensão social. O terno e os vestidos de gala expressam a vitória, pessoal, do indivíduo que se enriqueceu em um mundo em que aumenta a cada segundo a miséria da enorme maioria. Este momento de “glória” deve ser fixado em fotos para todo o sempre: assim, serão selecionadas as fotos em que comparecem aqueles vestidos “apropriadamente”! O custo de uma festa típica da “classe média” é da ordem de dezenas de milhares de reais, por vezes mesmo centenas. Um valor que um garçon ou garçonete que trabalhe na festa não conseguiria amealhar em uma década de trabalho estafante e desumano, alienante e sem razão de ser. Não é à toa que, ao se afirmar acima da miséria coletiva, a festividade profissionalmente organizada e a aparência conservadoramente trajada faça o indivíduo se perceber como um super-humano: isto sim é que é ser feliz, parece dizer a foto dos noivos cercados pelas roupas de gala. Terminada a festa, nada mais resta. A banda passou e cada um foi pro seu canto: em cada canto uma dor (A banda, de Chico Buarque).
Um casamento
A estética do casamento dos nossos dias é o exato simétrico do verão de 1967: se este visava um futuro humano, aquele nada mais faz que postular a eternidade da desumanidade do presente. Aquele ocorria em um parque ou show de rock (Hair, a cena no Central Park e a da festa de debutante). Nada de Igreja ou do Estado. A calça jeans e a camiseta hippies eram tão expressão dos ventos de mudança quanto são expressões do conservadorismo atual o terno, o cartório de registro civil e a Igreja. Detalhes são, quase sempre, desimportantes: outras vezes expressam os valores mais profundos da concepção de mundo. Hoje, tal como ontem, o terno e o traje de gala expressam o combate ao direito ao aborto, o espírito religioso e o individualismo burguês, tal como a estética de 1967 combinava com os ventos de mudança.
Isto são detalhes que, isoladamente, pouco significam. Contudo, no contexto atual, revelam um pouco da essência do nosso tempo. E do que temos à frente: o espírito conservador que temos que combater não se expressa apenas no voto em Bolsonaro. Está enraizado em uma sociedade que não contempla como futuro senão a sua própria destruição: temente do futuro, se tornou conservadora. Penetrou na vida cotidiana mesmo de setores progressistas ou preocupados com o destino humano: a hoje oposição eleitoral a Bolsonaro, Lula, se volta contra o direito ao abordo, se propõe ser mais crente do que seu opositor e mais burguês que o próprio capital — e a enorme maioria dos lulistas acredita ser este um preço aceitável a ser pago para vencer Bolsonaro. Não percebem que, assim fazendo, apenas dão razão ao conservadorismo do qual Bolsonaro é expressão: uma festa de casamento pode expressar valores tão conservadores quanto um voto em Bolsonaro. Mesmo que o casal vote em Lula. Mesmo que os músicos da festa, do palco, manifestem sua preferência pelo PT.
O combate ao conservadorismo precisa ser amplo, ou não terá chance de vitória. Não podemos abandonar a “pauta dos costumes” e centrar apenas na luta contra o capital (como se fosse possível lutar contra o capital sem lutar também contra o patriarcalismo, pelo direito ao aborto, pelo fim da monogamia, pelo “reino da liberdade”, pela concepção ateia de mundo etc.). Urge, pegando apenas um exemplo, defender o direito ao aborto com a mesma clareza e insistência com que lutamos para destruir o Estado e a exploração do ser humano pelo ser humano. Urge defender a concepção ateia de mundo tal como defendemos a destruição do capital e assim por diante.
Não parece, mas podemos vencer
A nosso favor, o conservadorismo atual tem este elemento essencial: pode se afirmar apenas como fake. Felicidade é um casório organizado por uma firma e com todos em trajes de gala? Que consome perdulariamente o esforço humano de milhares de horas de trabalho? Que promove um consumo perdulário não apenas esbanjador de trabalho humano, mas destruidor do planeta? Aqui está sua força enquanto ideologia, mas aqui também reside sua enorme fraqueza: é o elogio da destruição do humano, do planeta.
“O ser determina a consciência”: a força deste conservadorismo está em expressar o individualismo sofrido, angustiado e amesquinhado de uma humanidade que coletivamente destrói a si própria. Precisamente aí está seu pé de barro: para não se destruir, a humanidade terá que se livrar deste conservadorismo. Quando isso ocorrer, os ternos e trajes de gala terminarão nos museus, tal qual o machado de bronze! As pessoas se surpreenderão como, um dia, um amigo seria mais bem-vindo à uma festa se trajado a caráter; se surpreenderão de que a vestimenta já houvesse sido, um dia, mais importante que a pessoa! É aqui, no combate à totalidade deste conservadorismo, que temos nosso campo de batalha para converter o impossível, porém necessário, em possível! Um horizonte que se estende desde o confronto com a “espontaneidade organizada por empresas” das nossas festas familiares, até a luta pela destruição do capital e do Estado. Não devemos deixar de fora “a pauta dos costumes” pois são uma força e expressão ideológicas do capital que precisamos destruir.
As contradições tendem a se tornar ainda mais profundas: nos preparemos para o que virá!
Admiro o trabalho de vocês. Mas escrever “esquerda bolsonarista”, mesmo que irônica ou sei lá o que isso significa é demais. Estamos diante da extrema direita. Lula venceu as eleições pelo voto dos mais pobres. É preciso saírmos de nossas bolhas. Abraços.